A "Degola" nas Eleições Brasileiras no Início do Período Republicano: Práticas Políticas e Manipulações Eleitorais

O período inicial da República brasileira foi marcado por intensas disputas políticas e pela manutenção de práticas autoritárias e clientelistas herdadas do período colonial. Nesse contexto, as eleições, que deveriam ser um instrumento de expressão da vontade popular, frequentemente eram manipuladas pelas elites políticas para garantir a manutenção de seus interesses e privilégios. Uma das estratégias mais emblemáticas desse período foi a chamada "degola", um mecanismo utilizado para invalidar os resultados eleitorais e perpetuar o domínio das oligarquias locais sobre o processo político.

A "degola" consistia no não reconhecimento, por parte do Poder Legislativo, dos candidatos vencedores nas eleições, substituindo-os pelo segundo colocado, muitas vezes de maneira arbitrária e sem fundamentação legal. Essa prática era comumente empregada quando os interesses das oligarquias políticas locais estavam ameaçados pela ascensão de candidatos adversários, especialmente aqueles que representavam grupos sociais excluídos ou desafiavam a ordem estabelecida.

Para entender melhor como funcionava a "degola" nas eleições brasileiras no início do período republicano, é necessário analisar o contexto político e social da época, marcado pelo predomínio das oligarquias regionais, pela violência política e pela ausência de instituições democráticas efetivas.

O Contexto Político da Primeira República: Domínio das Oligarquias e Violência Política

Após a Proclamação da República em 1889, o Brasil entrou em um período de transição política marcado pela instabilidade e pela luta pelo poder entre diferentes grupos políticos. Nesse cenário, as oligarquias agrárias emergiram como os principais atores políticos, exercendo um domínio quase absoluto sobre os processos eleitorais e as estruturas de poder em suas respectivas regiões.

Na era pré-Justiça Eleitoral, o reconhecimento dos candidatos vencedores cabia ao Poder Legislativo — ao Senado e à Câmara no nível federal, e às Assembleias Legislativas nos níveis estadual e municipal. Em outras palavras, também a etapa do processo eleitoral estava nas mãos dos políticos.

As oligarquias, compostas por grandes proprietários de terra, coronéis, políticos influentes e membros das elites locais, controlavam não apenas os cargos eletivos, mas também os meios de produção, a força policial e os mecanismos de controle social. Por meio de práticas clientelistas, nepotismo, coerção e violência, essas oligarquias garantiam a submissão e o apoio de suas bases eleitorais, garantindo a perpetuação de seus interesses políticos e econômicos. O voto de cabreto é bom exemplo deste processo eleitoral manipulado.

No entanto, mesmo com o domínio das oligarquias, as eleições continuavam sendo um terreno fértil para a disputa política e a mobilização popular. Movimentos de resistência e oposição começaram a surgir, desafiando o monopólio do poder e questionando as práticas antidemocráticas e corruptas que caracterizavam o sistema político da época.

A "Degola" como Instrumento de Controle Político

Diante da ameaça representada por candidatos ou grupos políticos que desafiavam sua hegemonia, as oligarquias não hesitavam em recorrer à "degola" como um instrumento de controle político e de preservação de seus interesses. Essa prática consistia na não validação, por parte das instâncias legislativas, dos resultados eleitorais que não estivessem alinhados com os interesses das elites dominantes.

Uma vez que a contagem dos votos e a proclamação dos resultados estavam sob a responsabilidade do Poder Legislativo, controlado pelas próprias oligarquias, estas tinham o poder de decidir quais candidatos seriam reconhecidos como vencedores e quais seriam preteridos em favor de seus adversários políticos.

A "degola" podia ocorrer por uma série de motivos, desde questões técnicas e burocráticas até razões puramente político-partidárias. Por vezes, os parlamentares alegavam irregularidades no processo eleitoral, como fraudes ou manipulações, como pretexto para invalidar os resultados e impor sua própria vontade sobre o resultado das urnas.

Ação e Reação: Resistência Popular e Repressão Estatal

Diante da recorrência da "degola" como estratégia de manipulação eleitoral, surgiram movimentos de resistência e protesto por parte dos grupos sociais marginalizados e excluídos do processo político. Camponeses, trabalhadores urbanos, minorias étnicas e outros grupos oprimidos começaram a se organizar e a exigir mudanças no sistema político, denunciando as práticas fraudulentas e antidemocráticas que caracterizavam as eleições.

No entanto, a reação das oligarquias e das autoridades estaduais frente a esses movimentos foi marcada pela repressão e pela violência. Muitas vezes, as manifestações populares eram brutalmente reprimidas pela polícia, com o apoio dos coronéis e das milícias locais, que agiam em defesa dos interesses das elites dominantes.

A Transição para um Sistema Democrático e a Superação da "Degola"

Apesar da resistência e das lutas sociais, a "degola" e outras práticas de manipulação eleitoral persistiram ao longo das primeiras décadas da República brasileira, minando a legitimidade e a credibilidade do sistema político e reforçando o domínio das oligarquias sobre o processo eleitoral.

No entanto, ao longo do século XX, o Brasil passou por importantes transformações políticas, sociais e institucionais que contribuíram para a superação dessas práticas antidemocráticas e para a consolidação de um sistema político mais democrático e inclusivo. A instituição da Justiça Eleitoral, em 1932, representou um marco importante nesse processo, ao promover o controle e a fiscalização das eleições, garantindo a lisura e a transparência do processo eleitoral e combatendo as fraudes e manipulações. A partir deste momento, as mulheres foram incluídas no processo eleitoral depois de um período marcado por muitas lutas exigindo os meus direitos igualitários.

Com o advento da Justiça Eleitoral, as disputas políticas passaram a ser reguladas por leis e normas mais claras e transparentes, reduzindo o espaço para práticas antidemocráticas e ilegais. Além disso, a consolidação do sistema democrático no país trouxe consigo avanços significativos em termos de participação popular, representatividade política e garantia dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros. A criação de órgãos como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), responsáveis pela organização e fiscalização das eleições em todo o território nacional, contribuiu para a profissionalização e a imparcialidade do processo eleitoral, afastando a influência direta das elites políticas locais sobre os resultados das urnas.

Ao longo das décadas seguintes, o Brasil continuou a avançar na consolidação de um sistema democrático mais robusto e transparente, por meio da implementação de reformas eleitorais, modernização dos sistemas de votação e aprimoramento das instituições democráticas. A introdução das urnas eletrônicas na década de 1990, por exemplo, representou um avanço significativo na segurança e na confiabilidade do processo eleitoral, reduzindo as possibilidades de fraudes e manipulações.

No entanto, mesmo com todos esses avanços, ainda há desafios a serem enfrentados para garantir a plena integridade e legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. A influência do poder econômico sobre as campanhas políticas, a disseminação de fake news e a extrema polarização política são alguns dos desafios contemporâneos que ameaçam a lisura e a transparência das eleições no país.

Portanto, é fundamental que a sociedade brasileira continue vigilante e engajada na defesa da democracia e na luta contra qualquer forma de manipulação e corrupção no processo eleitoral. A consolidação de uma cultura política baseada na ética, na responsabilidade cívica e no respeito às instituições democráticas é essencial para garantir um futuro de justiça, igualdade e participação para todos os cidadãos brasileiros.


Na Revista Careta de 11 de maio de 1912, publicado na coluna "Oráculo" assinado por MME. de Thebes, podemos evidenciar como esse processo da "degola" se configurava. 

Domingo - Em suas respectivas casas os líderes das vinte e uma bancadas as convocarão para deliberar sobre a conduta que devem observar no reconhecimento dos últimos deputados.

Segunda-feira - Os jornais anunciarão que asvinte e uma bancadas deliberaram respeitar os direitos das minorias reconhecerão um oposicionista por cada distrito.

Terça-feira - Os respectivos relatores apresentarão às respectivas comissões pareceres reconhecendo, em cada distrito, um representante da oposição.

Quarta-feira - Em reunião celebrada no Palácio do Catete o Sr. Presidente comunicará quenão deve ser reconhecido, mais de um deputado oposicionista por Estado.

Quinta-feira - Os relatoresmodificarão os seus pareceres, mandando reconhecer apenas um oposicionista por Estado.

Sexta-feira - No palácio do Catete será resolvida a degola geral dos representantes das oposições.

Sábado - Em vista da última resolução tomada no Catete querendo poupar-se a novos esforços, os relatores riscarão, nos pareceres, os nomes dos oposicionistas, que serão degolados, escrevendo-lhes por cima o dos hermistas (candidatos aliados do presidente Hermes da Fonseca) que os substituirão.


Imagem: Charge da Revista Careta em 1912 ilustra a "degola" de candidatos na Câmara dos Deputados (imagem: Biblioteca Nacional Digital) Fonte: Agência Senado


Indicações de leitura:

•História do voto no Brasil 

•Eleições no Brasil: Do Império aos dias atuais

Ambos de Jairo Nicolau

•Coronelismo, enxada e voto por Victor Nunes Leal

Comentários

  1. Obrigada pelo conteúdo. Eu não conhecia como esse sistema funcionou.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Agradecemos o seu comentário. Isto nos ajuda no desenvolvimento deste blog.

Postagens mais visitadas