Análise da Música "Construção" de Chico Buarque

Breve Perfil do Compositor

Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque, é um dos mais importantes músicos, compositores, escritores e dramaturgos brasileiros. Nascido no Rio de Janeiro em 19 de junho de 1944, Chico é filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista Maria Amélia Cesário Alvim. Sua obra é marcada por um forte engajamento político e social, especialmente durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), período em que ele usou sua arte para criticar o regime e denunciar injustiças.

Chico Buarque começou sua carreira musical na década de 1960 e logo se destacou pelo talento lírico e melódico. Suas canções muitas vezes abordam temas como o amor, a resistência política e as desigualdades sociais. "Construção", lançada em 1971, é uma das suas músicas mais emblemáticas, destacando-se pela estrutura inovadora e pela profundidade temática.

 Conjuntura da Época

Na época em que "Construção" foi escrita, o Brasil vivia sob a ditadura militar, que se iniciou com o golpe de 1964 e se estendeu até 1985. Durante este período, o regime militar implantou um governo autoritário, censurando a imprensa, perseguindo opositores e limitando as liberdades civis. A censura afetava não só a política, mas também a produção cultural, com músicas, livros e peças de teatro sendo vetados ou modificados pelo governo.

A década de 1970 foi particularmente opressiva, com o Ato Institucional Número Cinco (AI-5) em vigor desde 1968, que dava poderes quase ilimitados ao presidente e intensificava a repressão. Foi nesse contexto que Chico Buarque, como muitos outros artistas, encontrou formas criativas de contornar a censura e expressar suas críticas ao regime. "Construção" é um exemplo brilhante dessa resistência, utilizando uma narrativa poética para abordar temas de exploração laboral e alienação social.

Análise da Letra

"Construção" é uma música que se destaca não apenas pela sua melodia, mas principalmente pela sua letra. A canção narra a vida de um trabalhador da construção civil, detalhando seu cotidiano e culminando em sua trágica morte. A estrutura da música é composta por versos que se repetem com pequenas variações, criando uma sensação de circularidade e inevitabilidade. Cada estrofe adiciona uma camada de profundidade à vida e morte do trabalhador, refletindo sobre a rotina desgastante e a desumanização do trabalho manual.

 Primeira Estrofe

> Amou daquela vez como se fosse a última  

> Beijou sua mulher como se fosse a última  

> E cada filho seu como se fosse o único  

> E atravessou a rua com seu passo tímido  

> Subiu a construção como se fosse máquina  

> Ergueu no patamar quatro paredes sólidas  

> Tijolo com tijolo num desenho mágico  

> Seus olhos embotados de cimento e lágrima  

> Sentou pra descansar como se fosse sábado  

> Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe  

> Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago  

> Dançou e gargalhou como se ouvisse música  

> E tropeçou no céu como se fosse um bêbado  

> E flutuou no ar como se fosse um pássaro  

> E se acabou no chão feito um pacote flácido  

> Agonizou no meio do passeio público  

> Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

A primeira estrofe da canção apresenta o trabalhador realizando suas atividades diárias com intensidade e dedicação, como se cada ato fosse único e último. A expressão "como se fosse" sugere uma tentativa desesperada de encontrar sentido e valor em tarefas ordinárias. Ele ama, beija e atravessa a rua com um sentido de urgência e singularidade, mas ao subir na construção, torna-se "máquina", simbolizando a desumanização e a alienação que o trabalho industrial impõe.

A construção, com suas "quatro paredes sólidas" e "tijolo com tijolo num desenho mágico", representa tanto a obra concreta que ele ajuda a criar quanto a prisão simbólica de sua existência. Seus olhos "embotados de cimento e lágrima" refletem o sofrimento e a exaustão que acompanham seu trabalho. A estrofe culmina com sua trágica morte, ocorrendo de forma abrupta e sem significado, "feito um pacote flácido", interrompendo o tráfego e sublinhando sua insignificância social.

Segunda Estrofe

> (Beijou sua mulher) como se fosse a única  

> (E cada filho seu) como se fosse o pródigo  

> E atravessou a rua com seu passo bêbado  

> Subiu a construção como se fosse sólido  

> Ergueu no patamar quatro paredes mágicas  

> Tijolo com tijolo num desenho lógico  

> Seus olhos embotados de cimento e tráfego  

> Sentou pra descansar como se fosse um príncipe  

> Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo  

> Bebeu e soluçou como se fosse máquina  

> Dançou e gargalhou como se fosse o próximo  

> E tropeçou no céu como se ouvisse música  

> E flutuou no ar como se fosse sábado  

> E se acabou no chão feito um pacote tímido  

> Agonizou no meio do passeio náufrago  

> Morreu na contramão atrapalhando o público

Na segunda estrofe, as variações nos versos reforçam a sensação de rotina repetitiva e inevitável. O trabalhador beija sua mulher "como se fosse a única" e seu filho "como se fosse o pródigo", indicando um sentimento de singularidade e redenção que ele busca em seus relacionamentos familiares. No entanto, sua travessia da rua é agora "com seu passo bêbado", sugerindo um aumento na alienação e no desgaste físico e emocional.

A construção é descrita como "sólida" e "mágica", mas também lógica e previsível, contrastando com a irracionalidade e a desumanização de sua vida. Seus olhos, antes embotados de cimento e lágrima, agora estão embotados de "cimento e tráfego", indicando uma fusão ainda maior entre o homem e o ambiente urbano opressivo.

A repetição dos atos cotidianos com ligeiras variações (como "máquina" e "máximo") sublinha a monotonia e a falta de significado de sua existência. A estrofe termina novamente com sua morte, desta vez atrapalhando o "público", reforçando sua invisibilidade e a indiferença da sociedade.

 Terceira Estrofe

> Amou daquela vez como se fosse máquina  

> Beijou sua mulher como se fosse lógico  

> Ergueu no patamar quatro paredes flácidas  

> Sentou pra descansar como se fosse um pássaro  

> E flutuou no ar como se fosse um príncipe  

> E se acabou no chão feito um pacote bêbado  

> Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Na terceira estrofe, as variações nos versos tornam-se ainda mais pronunciadas, refletindo uma deterioração ainda maior na vida do trabalhador. Ele ama "como se fosse máquina" e beija "como se fosse lógico", indicando uma completa mecanização e desumanização de seus sentimentos e ações.

As "quatro paredes flácidas" que ele ergue simbolizam a precariedade e a falta de solidez de sua obra e de sua vida. Sentar "como se fosse um pássaro" e flutuar "como se fosse um príncipe" sugerem um desejo de liberdade e transcendência que permanece inalcançado.

Sua morte, "feito um pacote bêbado", atrapalhando o "sábado", indica não apenas a insignificância de sua vida, mas também a interrupção de um momento de lazer e descanso para os outros, destacando a desconexão entre o trabalhador e a sociedade que ele serve.

 Função Social da Letra

"Construção" é uma poderosa crítica social que denuncia a exploração e a desumanização dos trabalhadores no Brasil. Através de uma narrativa poética e uma estrutura inovadora, Chico Buarque expõe a brutalidade e a alienação impostas pelo trabalho manual na sociedade moderna. A repetição e variação dos versos enfatizam a monotonia e a falta de significado da vida do trabalhador, enquanto a descrição detalhada de suas ações cotidianas e de sua morte abrupta sublinha sua invisibilidade social e a indiferença da sociedade em relação ao seu sofrimento. 

Impacto na Classe Trabalhadora

A letra de "Construção" é capaz de desvelar a vida de um trabalhador e espelhar as experiências de muitos outros da mesma classe. A descrição do cotidiano do trabalhador, suas emoções e sua trágica morte ressoam com a realidade de muitos trabalhadores brasileiros que enfrentam condições de trabalho precárias, baixos salários e pouca ou nenhuma proteção social. Ao dar voz a essas experiências, Chico Buarque não apenas denuncia as injustiças sociais, mas também humaniza os trabalhadores, destacando sua dignidade e resiliência.

 Conclusão

"Construção" é uma obra-prima de Chico Buarque que transcende a música popular para se tornar um documento histórico e social. Através de sua letra complexa e inovadora, Chico Buarque apresenta uma crítica profunda às condições de vida e trabalho dos operários, destacando a desumanização e a alienação impostas pelo sistema capitalista.

Com sua habilidade lírica e melódica, o compositor criou uma canção que ressoa profundamente com a realidade dos trabalhadores brasileiros, seja este indivíduo da construção civil ou não, "Construção" é uma prova do poder da arte em expor a verdade e inspirar mudanças, permanecendo relevante e impactante até os dias de hoje.


Indicações de leitura:

● História do Trabalho revista, por vários autores 

● Os trabalhadores, por Eric Hobsbawm

● A invenção do trabalhismo, por Angela de Castro Gomes

Para ouvir a música, basta clicar no link:

https://youtu.be/wBfVsucRe1w?si=mvPYsDq7TMXFNZ65

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