A política econômica do Encilhamento no Brasil da Primeira República


O Encilhamento foi uma política econômica implementada no Brasil entre 1889 e 1892 durante o governo do primeiro presidente da República,  o marechal Deodoro da Fonseca, na passagem da transição da Monarquia para a República. Este período foi liderado pelo jurista Rui Barbosa, um dos mais influentes intelectuais e políticos brasileiros da época. A política tinha como objetivo estimular a industrialização do país através da liberalização de créditos e da emissão de papel-moeda. No entanto, essas medidas resultaram em uma bolha especulativa, inflação galopante e falências em massa. O termo "encilhamento" remete à confusão dos hipódromos, simbolizando a desordem econômica que marcou o período. A crise culminou em uma profunda desconfiança no sistema financeiro e agravou a concentração de renda, evidenciando a fragilidade da nova República.

Contexto Histórico

A proclamação da República em 1889 trouxe consigo uma série de desafios econômicos e políticos para o Brasil. A transição do regime monárquico para o republicano não foi apenas uma mudança de forma de governo, mas também representou uma transformação nas estruturas econômicas e sociais do país. Nesse cenário, Rui Barbosa, como Ministro da Fazenda do governo provisório, buscou implementar políticas que promovessem o desenvolvimento econômico, com um foco especial na industrialização.

A Ideia de Rui Barbosa

Rui Barbosa acreditava que a industrialização era essencial para o progresso do Brasil. Inspirado pelas ideias liberais e pelo sucesso da Revolução Industrial na Europa e nos Estados Unidos, ele propôs a expansão do crédito e a emissão de papel-moeda como formas de estimular o investimento em novos empreendimentos industriais. A ideia era que, com mais dinheiro em circulação e maior acesso ao crédito, empresários e investidores se sentiriam encorajados a criar novas empresas e indústrias.

Implementação da Política

Para implementar sua política, Rui Barbosa promoveu a liberalização dos critérios para a criação de bancos e outras instituições financeiras. Com menos restrições, diversas novas instituições surgiram, oferecendo crédito fácil e incentivando a especulação. A emissão de papel-moeda foi intensificada, aumentando significativamente a quantidade de dinheiro em circulação.

No início, essas medidas pareceram promissoras. Houve um boom de criação de empresas e investimentos em diversas áreas, especialmente na construção de infraestruturas e no setor industrial. A economia brasileira parecia estar em franco crescimento, e o otimismo predominava entre os empresários e investidores.

A Bolha Especulativa

No entanto, a rápida expansão do crédito e a emissão descontrolada de papel-moeda criaram as condições para o desenvolvimento de uma bolha especulativa. Muitos dos novos empreendimentos eram baseados em expectativas irrealistas de lucro e crescimento. Além disso, a facilidade de obter crédito levou a uma especulação desenfreada no mercado de ações, com investidores comprando ações de empresas que muitas vezes existiam apenas no papel.

A especulação não se limitou ao mercado de ações. Muitos investidores começaram a aplicar dinheiro em empreendimentos imobiliários e outros negócios que não tinham bases sólidas. Com o tempo, a oferta excessiva de dinheiro e crédito começou a pressionar os preços para cima, resultando em inflação. A inflação corroeu o poder de compra da população e aumentou os custos de produção, prejudicando as empresas que operavam em setores mais tradicionais da economia.

A Crise

A situação econômica escalou e tornou-se insustentável em 1891, quando a bolha especulativa estourou. Muitas das novas empresas não conseguiram cumprir as promessas de lucro e crescimento, levando a uma onda de falências. O sistema bancário, que havia se expandido rapidamente graças à política de liberalização, sofreu pesadas perdas e diversas instituições foram à falência. 

A inflação galopante e a crise bancária resultaram em uma severa recessão econômica. A confiança no sistema financeiro foi abalada, e a desordem econômica que se seguiu afetou todos os setores da sociedade. A crise agravou a concentração de renda, pois enquanto muitos investidores e empresários perdiam tudo, aqueles que possuíam recursos e estavam melhor informados conseguiram proteger seus ativos e, em alguns casos, tirar proveito da situação.

Consequências Políticas e Sociais

O fracasso do Encilhamento teve profundas consequências políticas e sociais. A nova República, que já enfrentava resistência de setores monarquistas e conservadores, viu sua legitimidade questionada devido à crise econômica. A desconfiança na capacidade dos novos líderes republicanos em gerir a economia gerou um ambiente de instabilidade política, culminando em frequentes mudanças de governo e na ascensão de lideranças militares.

A crise também evidenciou a fragilidade das instituições econômicas brasileiras. A falta de regulamentação adequada e a ausência de mecanismos eficazes de supervisão financeira permitiram que a especulação desenfreada e a emissão excessiva de papel-moeda criassem uma situação insustentável. A necessidade de reformas estruturais ficou clara, mas a implementação dessas reformas foi um processo longo e difícil.

Havia manifestações na imprensa e pela população que sentia os efeitos do fracasso econômico. Numa crítica bem humorada, uma sátira acerca do "Encilhamento", publicada no relevante jornal "O Paiz" em 17 de janeiro de 1891, indeterminado indivíduo utilizando o pseudônimo de Busca-pé, demonstrou a sua indignação. Entretanto, vale ressaltar que o periódico em questão posicionava-se sempre que necessário, contra o governo. Talvez o tal Busca-pé estivesse expressando uma espécie de editorial. Vejamos: 

FOGUETES  

Quem é vivo sempre aparece. Cá estou eu; e furioso como uma jararaca histérica, ou uma sogra danada. Imaginem que andei pelo "Encilhamento", estes quinze dias, por ter ouvido dizer que ali toda a gente enriquecem, e que voltei com as mãos abanando. Imaginem também que, apenas aqui  cheguei ontem, muito desconsolado, fui recebido com este cumprimento de quem o podia fazer:  - Olá, seu Busca-pé; olhe que O Paiz não é seu pai, para sustentá-lo na vadiação de uma quinzenal. Imaginem, ainda mais, que deixei o meu sócio, o tal Sr. Girassol, enearregado de me substituir, e que durante esse tempo o pastrana não arredou palha e  apresentou-me uma conta, como hotel em ceia fora de horas. Imaginem, além do mais, que me descontaram quinze dias de fornecimento de foguetes. Imaginem, se quiserem, que encontrei  cartas de congressistas carolas dando parabéns a esta folha pela liquidação da minha oficina.  Imaginem... não imaginem mais nada; isto que ali fica chega de sobra. Pois imaginem tudo isso e vejam se tenho ou não razão para estar como a tal jararaca histérica em dia de quarto minguante. Felizmente toda a medalha tem reverso; vou casar-me, como já anunciei és minha futura consorte, D. Maria Luiza Pólvora, prometeu-me não se meter em eleições nem ser candidata à deputação fluminense. Dizem que a mulher modifica o caráter  do homem. Só assim serei capaz de dar um abraço no Dr. Portella, que, não tendo mais nada  para dar, no arrebentado estado do Rio de Janeiro, bem poderá dar-me um beijo. Vou casar-me; e quero ver se a Pólvora modifica o Busca-pé. Até amanhã,

Busca-pé.

Noutro jornal, não menos importante, a "Gazeta de Notícias" em 14 de dezembro de 1892, um leitor escreve à redação chamando atenção para uma peculiaridade econômica que ocorria naquele momento na cidade de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Reclamou esse leitor:

Escrevem-nos:  

Há atualmente em Petrópolis mais  de cinquenta casas para alugar. Entretanto, a quem pretende tomá-las, os proprietários pedem três, quatro, cinco, seis  contos de réis. Estão com a boca doce dos últimos anos, e pensam que o encilhamento ainda funcciona. Com os hoteis dá-se a mesma coisa. Estão quase vazios;  mas assoalham que estão todos tomados, para arrancarem couro e cabello as vítimas que lhes caem nas unhas. Não seria bom, Sr. redator, que, a vista da bela estação que estamos atravessando, se  organizasse uma greve contra tanta especulação.  

Uma dos problemas mais graves no período do Encilhamento foi justamente a especulação. O leitor chama atenção exatamente para este caso, que apesar do evidente fracasso, ainda havia quem gostaria de continuar faturando na especulação financeira.

Legado do Encilhamento

O legado do Encilhamento é complexo e multifacetado. Por um lado, ele representou uma tentativa ambiciosa de modernizar a economia brasileira e promover a industrialização. Por outro lado, a crise econômica resultante expôs as limitações e os riscos das políticas adotadas sem um planejamento adequado e sem a devida regulação.

Mesmo passado um pouco mais de uma década do fracasso econômico provocado pela política do Encilhamento, a preocupação era evidente quanto aos rumos do país. Como lembrança daquele período complexo, com um novo presidente da República no poder na fugura de Venceslau Brás, que sucedeu o conturbado governo do presidente marechal Hermes da Fonseca, a prestigiada revista "Careta" na edição de 13 de março de 1915, resolveu promover o que ela chamou num editorial de "Ideias de Governo". De acordo com a revista:

A situação do Tesouro não é de nenhum modo lisonjeira. Longe de nós dizer o contrário. Seria um disparate. Um país que aguentou por quatro anos um governo como o passado, é para ficar nas últimas. E o Brasil ficou. Mas não morreu. Tem mais fôlego do que um gato. Com muito repouso, dieta, evitando abalos, pode ainda ir acima. É difficil, mas pode. E porém necessário que os enfermeiros fiquem alerta e não descuidem um instante.

Ora o governo atual, honra lhe seja, vai desempenhando satisfatoriamente o seu papel. Aliás um bom programa de governo de governo não é bicho de sete cabeças. É coisa fácil. Quer o governo andar bem? Nada mais simples. Faça o contrário do que fez o governo passado. Esse programa já está em começo de execução. Pela primeira vez, depois de varios anos, os serviços públicos começam a dar saldos. O Lloyd Brasileiro, celebre e encrencado Lloyd que tem custado ao Tesouro os olhos da cara (que asneira saiu pois o Tesouro tem cara?), o Lloyd que tem custado mundos e fundos, já em janeiro e fevereiro deu saldos. Coisa incrível mas real. A subvenção que lhe pagava o governo foi, empregada em saldar dívidas antigas e em reparos da frota.

Outra novidade foi o argumento da renda da Es- trada de Ferro Caveira de Burro. A supressão dos passes de favor e a fiscalização dos serviços, restabelecida pelo Sr. Arrojado Lisboa augmentou consideravelmente a renda da estrada. Isso nos autoriza a esperar milagre da renda da Central ainda vir a chegar para seu custeio. Parece impossível mas quem sabe? Há neste mundo tanta coisa incrível de acreditar, como diz o outro, e que entretanto acontece. Para restaurar as finanças não bastam porém esses facmtos. É necessário, por exemplo, suprimir o subsídio dos deputados e senadores. Nos países mais liberais os representantes da nação não vencem subsídio. mandato de congressista se tornou um emprego, requestado por muitos cavalheiros sem occupação sem profissão. E isto deve ter fim. Quem não tiver meios, nem emprego, nem profissão, não deve ser representante do povo. E o confisco das fortunas mal adquiridas, pelos políticos e homens de governo? Eis aí uma excelente ideia, que já produziu o melhor resultado em França, quando executada por Colbert e que aqui alliviaria consideravelmente o Tesouro. Emfim são ideias como quaisquer outras. Se o governo quizer utilizar-se delas, nós lhe as cedemos por duzentos réis.

Perceba que mesmo depois de aconselhar o governo num suposto plano econômico, a revista oferece essa espécie de "consultoria" mediante pagamento. Poderia ter sido em tom irônico diante de fracassos e crises econômicas anteriores? É possível, afinal na época do Encilhamento, o que mais se viu foi o governo distribuindo créditos.

O episódio do Encilhamento serviu como uma lição importante sobre a necessidade de equilíbrio entre estímulo econômico e controle financeiro. A emissão descontrolada de papel-moeda e a liberalização excessiva do crédito podem criar bolhas especulativas e crises financeiras que prejudicam toda a economia. Além disso, a experiência destacou a importância de instituições fortes e eficazes para supervisionar o sistema financeiro e garantir a estabilidade econômica.

Análise Crítica

Uma análise crítica do Encilhamento deve considerar o contexto histórico e as motivações por trás das políticas implementadas por Rui Barbosa. A transição da Monarquia para a República foi um período de grande incerteza e transformação, e havia uma pressão significativa para demonstrar que o novo regime era capaz de promover o desenvolvimento e o progresso.

Rui Barbosa, como um intelectual influente e defensor do liberalismo econômico, acreditava que a industrialização era essencial para o futuro do Brasil. Sua política de liberalização do crédito e emissão de papel-moeda refletia essa convicção, mas a execução dessas políticas revelou-se problemática. A falta de regulamentação adequada e a euforia especulativa criaram uma bolha econômica que, inevitavelmente, estourou.

A crise resultante foi um golpe significativo para a economia brasileira e para a credibilidade do novo regime republicano. A desconfiança no sistema financeiro e a concentração de renda exacerbada pela crise tiveram efeitos duradouros, influenciando as políticas econômicas e a estrutura social do Brasil nas décadas seguintes.


Recomendações de Leitura:

Para aqueles interessados em aprofundar o conhecimento sobre o Encilhamento e suas implicações para a economia e a política brasileira, recomendo os seguintes livros:

1. História Econômica do Brasil por Caio Prado Júnior

2. A vida de Rui Barbosa por Luiz Viana Filho 

3. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil de José Murilo de Carvalho 

4. O Encilhamento por Visconde de Taunay 

Essas leituras fornecerão uma base sólida para compreender o Encilhamento, suas causas e consequências, bem como o contexto histórico mais amplo em que ocorreu.


Nota: As fontes consultadas dos jornais e revistas da época estão disponíveis em:

https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

Imagens: 1. Charge de Pereira Neto satiriza a especulação financeira causada pelo Encilhamento. Revista "Ilustrada", dezembro de 1890; 2. Revista "Careta" edição de 13 de março de 1915.

Veja mais em:

https://youtu.be/u-HP8kHT858?si=PvpQpXMqzEIfq8H1


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