Roda Viva: Uma Análise Histórica, Social e Filosófica da Obra de Chico Buarque
"Roda Viva", composta por Chico Buarque em 1967, é uma canção que transcende seu tempo, ressoando tanto como uma obra de arte quanto como um comentário social e filosófico. Lançada durante um período turbulento da história brasileira, a música capturou o espírito de uma era marcada por ditadura militar, censura e resistência cultural. Por meio de sua poesia densa e melodia marcante, Chico Buarque oferece uma reflexão profunda sobre as forças avassaladoras que moldam e, por vezes, destroem os sonhos e esperanças individuais e coletivas.
Aspectos Históricos: A Ditadura Militar e a Censura
Para compreender plenamente "Roda Viva", é essencial situá-la no contexto histórico de sua criação. Em 1964, o Brasil entrou em um período de ditadura militar que duraria até 1985. Esse regime autoritário implementou uma série de medidas repressivas, incluindo censura à imprensa e às artes, perseguição a dissidentes políticos e controle rígido sobre a vida pública e privada dos cidadãos.
Chico Buarque, junto com outros artistas da época, tornou-se uma figura central na resistência cultural contra o regime. Suas canções frequentemente abordavam temas de liberdade, injustiça social e crítica ao autoritarismo, mesmo que de forma velada para escapar da censura. "Roda Viva" é um exemplo claro dessa estratégia. Embora a letra não mencione explicitamente a ditadura, a canção foi amplamente interpretada como uma alegoria das forças opressivas que esmagavam a expressão individual e coletiva.
A "roda-viva" mencionada na música pode ser vista como uma metáfora para o regime militar que, implacável e indiferente, "carrega" tudo o que encontra em seu caminho: sonhos, esperanças, cultura. A roda, com seu movimento contínuo e incontrolável, simboliza a inexorabilidade da história e das forças sociais que, uma vez em movimento, são difíceis de conter ou direcionar.
Aspectos Sociais: A Desilusão e a Resistência
A letra de "Roda Viva" expressa um sentimento de desilusão que era comum entre os brasileiros durante os anos de chumbo. A sensação de impotência diante das forças políticas e sociais é um tema central da canção. "A gente quer ter voz ativa / No nosso destino mandar / Mas eis que chega a roda-viva / E carrega o destino pra lá" é uma linha que encapsula essa frustração. O desejo de controle sobre a própria vida e o próprio destino é constantemente frustrado por uma "roda-viva" que impõe seu ritmo e direção, independentemente das vontades individuais.
Essa impotência não se restringe ao âmbito político. A música também aborda a perda de valores culturais e identitários. A "roseira" e a "viola", símbolos da cultura brasileira e da resistência pacífica, são igualmente levadas pela roda-viva. Aqui, Chico Buarque parece lamentar a erosão das tradições e da cultura popular em face da modernidade avassaladora e das pressões externas, incluindo a influência cultural norte-americana e o avanço de uma sociedade cada vez mais consumista e alienada.
Ainda assim, "Roda Viva" não é uma canção de rendição total. Apesar do reconhecimento da força avassaladora da roda-viva, há também uma subcorrente de resistência. O simples ato de cantar, de expressar essa desilusão e esse lamento, é em si uma forma de resistência. Ao transformar o sofrimento e a opressão em arte, Chico Buarque oferece uma válvula de escape e um meio de sobrevivência cultural em tempos de repressão.
Aspectos Filosóficos: O Existencialismo e a Condição Humana
Do ponto de vista filosófico, "Roda Viva" pode ser interpretada à luz do existencialismo, uma corrente de pensamento que enfatiza a experiência individual, a liberdade e a responsabilidade pessoal em um universo muitas vezes caótico e sem sentido. A música reflete a tensão existencial entre o desejo humano de dar sentido à vida e a realidade de um mundo que, frequentemente, parece indiferente ou mesmo hostil a esses esforços.
As linhas "A gente vai contra a corrente / Até não poder resistir" sugerem a luta contínua e, em última instância, fútil contra as forças que moldam nossas vidas. Essa luta contra a "corrente" pode ser vista como uma metáfora para a busca de sentido em um mundo que não oferece garantias ou recompensas certas. É uma luta que parece condenada ao fracasso, mas que, paradoxalmente, é o que define a condição humana.
Schopenhauer, um dos filósofos que influenciou o existencialismo, propôs que o sofrimento é uma parte intrínseca da vida humana, e que o desejo é a raiz desse sofrimento. Em "Roda Viva", o desejo de controle, de realização e de preservação cultural é constantemente frustrado, resultando em um ciclo de esperança e desilusão. A "roda" não para, e a vida continua em seu fluxo inexorável, indiferente aos sonhos e às aspirações individuais.
No entanto, a canção também sugere que há um valor intrínseco na própria luta, mesmo que esta seja fútil. O fato de "a gente tomar a iniciativa" e "cantar" indica uma recusa em simplesmente aceitar a passividade diante das circunstâncias. Este é um eco do pensamento de filósofos existencialistas como Sartre, que argumentava que, apesar da aparente falta de sentido do universo, os indivíduos têm a liberdade – e a responsabilidade – de criar seu próprio significado através de suas ações.
O legado de "Roda Viva"
Mais de cinco décadas após seu lançamento, "Roda Viva" continua a ser uma das músicas mais emblemáticas da obra de Chico Buarque e da música popular brasileira em geral. Sua capacidade de capturar a complexidade da experiência humana em tempos de crise lhe conferiu um status quase mítico. A roda-viva que Chico descreve não é apenas a roda da história brasileira, mas também a roda da própria vida, com suas voltas imprevisíveis e seu movimento inexorável.
A canção foi frequentemente relembrada e reinterpretada em contextos diversos, sempre ressoando com novas gerações que enfrentam seus próprios desafios sociais, políticos e existenciais. Durante a ditadura, "Roda Viva" foi uma canção de resistência, um lembrete de que, mesmo diante da repressão, a cultura e a voz do povo não podem ser completamente suprimidas. Em tempos mais recentes, a música tem sido usada para expressar a contínua luta por direitos e justiça em um mundo que, muitas vezes, parece girar fora de controle.
Por fim, "Roda Viva" é uma obra que transcende sua própria época, oferecendo uma reflexão atemporal sobre a natureza da vida, da história e das forças que nos moldam. Ao confrontar os ouvintes com a incerteza e a transitoriedade da existência, Chico Buarque não apenas narra a experiência de uma geração, mas também lança uma luz sobre a condição humana em geral. E, ao fazê-lo, ele nos convida a considerar como podemos encontrar nosso próprio caminho e nosso próprio sentido dentro da roda-viva que nunca para de girar.
A letra da música:
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
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parabéns pelo texto!
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