A Teoria da Estupidez de Dietrich Bonhoeffer: Um Estudo sobre o Poder, Manipulação e Resistência
Dietrich Bonhoeffer, teólogo alemão e uma das mais influentes vozes contra o regime nazista, desenvolveu uma reflexão surpreendentemente atual sobre um tema que transcende épocas: a estupidez. Longe de ser uma simples crítica à falta de inteligência, a "Teoria da Estupidez" de Bonhoeffer é um diagnóstico profundo das condições sob as quais as pessoas se tornam vulneráveis à manipulação, incapazes de discernir entre verdade e mentira, e alheias ao apelo da razão. Sua análise da estupidez se insere num contexto histórico específico — a Alemanha nazista — mas tem uma ressonância universal, principalmente em tempos de ascensão de regimes autoritários ou populistas.
Quem foi Dietrich Bonhoeffer?
Nascido em 4 de fevereiro de 1906 em Breslau, na Polônia Dietrich Bonhoeffer foi um pastor luterano, teólogo e figura de destaque na resistência cristã ao nazismo. Desde jovem, Bonhoeffer se destacou por seu brilhantismo intelectual e seu compromisso ético. Estudou teologia em Berlim e se envolveu com correntes do pensamento protestante, que buscavam reconciliar a fé cristã com os desafios da modernidade. Foi profundamente influenciado pela teologia de Karl Barth e pela questão de como viver a fé cristã em um mundo secularizado.
No entanto, foi a ascensão de Adolf Hitler ao poder em 1933 que marcou o ponto de virada na vida de Bonhoeffer. Ele não apenas se opôs ao nazismo desde o início, mas fez parte de um pequeno grupo de clérigos que fundou a Igreja Confessante, um movimento de resistência ao controle do Estado sobre as igrejas. Para Bonhoeffer, o nazismo era uma aberração não só política, mas espiritual, uma expressão do mal absoluto que exigia uma resposta clara dos cristãos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Bonhoeffer se envolveu ativamente em uma conspiração para derrubar Hitler, participando de um grupo que planejou um atentado contra o Führer. Foi preso em abril de 1943 e, após dois anos de encarceramento, foi executado em 9 de abril de 1945, apenas algumas semanas antes da rendição da Alemanha.
A Teoria da Estupidez: Contexto e Reflexões
Uma das reflexões mais provocativas de Bonhoeffer, escrita enquanto estava preso pelos nazistas, foi sobre a natureza da estupidez humana. Ele não se referia à estupidez como uma falha meramente intelectual ou cognitiva, mas sim como uma condição moral e social. Bonhoeffer observou que, em tempos de regimes autoritários e de manipulação ideológica em massa, a estupidez parecia se proliferar de forma alarmante. Em seus escritos, ele afirma que a estupidez é mais perigosa do que a maldade, porque enquanto a maldade pode ser combatida e exposta, a estupidez é impenetrável à razão.
A chave para entender essa teoria está na observação de que a estupidez não é um defeito intrínseco ao indivíduo, mas uma condição que se manifesta sob determinadas circunstâncias, especialmente sob o poder opressivo e totalitário. O indivíduo estúpido, para Bonhoeffer, não é alguém necessariamente desprovido de inteligência, mas sim uma pessoa que, sob pressão ou influência de um poder esmagador, se torna incapaz de pensar criticamente e de reconhecer a verdade. Assim, a estupidez é um fenômeno social e coletivo, mais do que uma deficiência pessoal.
Estupidez como ferramenta de poder
Para Bonhoeffer, a estupidez floresce em situações em que o poder e a dominação são exercidos de maneira tirânica. Ele escreveu:
"A estupidez é mais perigosa que a maldade Contra o mal se pode protestar; o mal pode ser exposto, revelado; pode também ser evitado, se necessário, até pela força; o mal sempre carrega o germe da autodecomposição, deixando pelo menos um desconforto naquele que pratica. Diversamente, não há como se defender da estupidez. Nada pode ser feito aqui com protestos ou com violência; razões não a convencem; simplesmente não se dá crédito a fatos que contradigam próprio preconceito - em tais casos, o estúpido se torna ainda mais resistente - e se esses fatos são incontestáveis, podem com facilidade ser postos de lado como casos isolados e sem sentido estúpido, ao contrário da pessoa má, sente completamente satisfeito consigo mesmo; sim, ele até se torna perigoso, enfurecendo-se facilmente quando é refutado. Portanto, a relação com o estúpido exige muito mais cautela do que com a pessoa má. Nunca se há de convencer o estúpido pela razão - é inútil e perigoso. Para saber lidar com a estupidez, é preciso antes procurar entender sua natureza. Não se trata essencialmente de um defeito intelectual, mas algo que atinge a humanidade do sujeito. Tanto é assim que existem pessoas de inteligência extraordinariamente ágil que são estúpidas e pessoas intelectualmente pesadas que podem ser tudo, menos estúpidas.
Para nossa surpresa, chegamos à seguinte conclusão: parece que a estupidez não é propriamente um defeito congênito, mas um processo em que as pessoas se tornam estúpidas sob certas circunstâncias, ou deixam-se fazer estúpidas de forma recíproca. Também observamos que a estupidez aparece mais em pessoas ou grupos propensos ou condenados a viver em comum do que em pessoas mais fechadas, reservadas e solitárias. Assim, parece que a estupidez é um problema mais sociológico do que psicológico. É uma forma especial de influência das circunstâncias históricas sobre o homem, isto é, uma consequência psicológica de certas circunstâncias externas. Em uma análise mais detalhada, verifica-se que toda forte expansão externa do poder, seja política ou religiosa, golpeia um grande número de pessoas com estupidez. Sim, parece que é uma lei psicológica e sociológica. O poder de alguém precisa da estupidez de outrem, processo não é que, de repente, algumas faculdades -como a intelectual - definhem ou fracassem, mas sim que a independência interna da pessoa vai sendo roubada pela impressão esmagadora do desenvolvimento do poder, até que - mais ou menos inconscientemente - essa pessoa renuncia a encontrar seu próprio comportamento em relação às situações que a vida lhe apresenta fato de o estúpido ser muitas vezesteimoso não significa que ele seja independente. Conversando com ele, vocêquase pode sentir que seu discurso nemsequer tem a ver com ele mesmo, com aquiloque o constitui. Trata-se de frases de efeito, slogans e chavões que se apoderaram dele.
Ele está enfeitiçado, cego, abusado e maltratado em sua própria natureza.Tornando-se assim um instrumento sem vontade própria, o estúpido será capaz de todo o mal e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecer-se mau ou de reconhecermaldade em seus atos. Aqui está o perigo de um abuso diabólico. Como resultado, as pessoas serão destruídas para sempre.
Disso decorre que somente um ato de liberação - e não um ato de instrução poderá superar a estupidez. Na grande maioria dos casos, para superar a estupidez, a pessoa terá de aceitar que uma genuína libertação interior só se tornará possível após a libertação externa; até então, sem essa condição, teremos que desistir de todas as tentativas de convencer os estúpidos. A propósito, nesse estado de coisas, fica bem claro que em tais circunstâncias é vão tentar saber o que "o povo" realmente pensa, mesmo porque, ao mesmo tempo - nessas dadas circunstâncias - qualquer resposta seria supérflua para o pensador e realizador responsável.
A Palavra da Bíblia que diz que o temor de Deus é o começo da sabedoria (Salmos 111: 10); diz que a liberação interior dos humanos, para uma vida responsável diante de Deus, é a única verdadeira superação da estupidez.
De resto, esses pensamentos sobre a estupidez são reconfortantes, pois não permitem tratar a maioria das pessoas como estúpidas a todo custo. Realmente, isso dependerá da tendência dos Poderes Instituídos, vale dizer, se querem tornar seu povo estúpido ou se buscam a independência interior e sabedoria de seus governos."
Bonhoeffer sugere que a estupidez não é um traço estático, mas algo que é cultivado. Sob um regime totalitário, como o nazismo, a capacidade de raciocínio autônomo é desincentivada, e os indivíduos são atraídos para o conformismo e o pensamento de grupo. Nesse sentido, a estupidez é, em grande parte, uma consequência da desumanização promovida por aqueles que estão no poder.
Os regimes autoritários prosperam em ambientes onde a crítica e o questionamento são sufocados, e as massas são incentivadas a seguir cegamente as diretrizes do Estado ou do líder carismático. A estupidez, assim, torna-se um escudo para aqueles que participam do mal, mas que, por causa da sua cegueira deliberada ou compulsória, não reconhecem sua própria cumplicidade.
A Libertação da Estupidez
Bonhoeffer não acreditava que a estupidez pudesse ser combatida simplesmente com argumentos ou educação. Para ele, o problema era muito mais profundo e enraizado nas estruturas de poder. "A estupidez só pode ser superada por um ato de libertação, e isso é possível quando o indivíduo é libertado de sua condição de submissão a um poder opressor", escreveu.
Essa libertação não é apenas política, mas também espiritual e moral. Para Bonhoeffer, a verdadeira liberdade vem da capacidade de reconhecer a verdade, mesmo quando ela é inconveniente ou contrária às nossas crenças pré-existentes. Ele via a fé cristã como uma fonte de força para resistir à estupidez, pois o cristianismo genuíno exige a busca pela verdade e o amor ao próximo, o que necessariamente implica uma disposição para questionar o poder quando ele se torna corrupto ou opressor.
A Estupidez e o Engano Coletivo
Um dos aspectos mais poderosos da Teoria da Estupidez de Bonhoeffer é sua descrição do efeito coletivo da estupidez. Ele argumenta que as pessoas, em grupo, podem se tornar estúpidas de maneiras que individualmente não seriam. Isso acontece porque, em um grupo, o indivíduo renuncia à responsabilidade de pensar criticamente e se entrega ao pensamento da massa. A lealdade ao grupo, ao líder ou à ideologia passa a ser mais importante do que a lealdade à verdade.
Essa dinâmica explica como sociedades inteiras podem se envolver em atos de brutalidade ou injustiça sem que seus membros percebam. Eles se tornam "estúpidos" no sentido bonhoefferiano, ou seja, incapazes de ver o mal que estão perpetrando ou permitindo que aconteça.
A Teoria da Estupidez no Contexto Atual
Embora Dietrich Bonhoeffer tenha desenvolvido sua teoria no contexto específico da Alemanha nazista, ela tem implicações para os dias de hoje. Em tempos de polarização política, fake news e manipulação em massa por meio das mídias sociais, a estupidez no sentido bonhoefferiano está longe de ser um fenômeno isolado. Ao contrário, é uma ameaça sempre presente em qualquer sociedade onde o poder busca sufocar o pensamento crítico e manipular a percepção da realidade.
Nos dias atuais, vemos manifestações da estupidez coletiva em várias esferas da vida pública, desde a negação de fatos científicos até a adesão cega a líderes carismáticos que prometem soluções simplistas para problemas complexos. A incapacidade de discutir e de se abrir ao diálogo construtivo é um sintoma dessa forma de estupidez.
Conclusão
A Teoria da Estupidez de Dietrich Bonhoeffer oferece um insight crucial sobre a relação entre poder, moralidade e o comportamento humano. Para Bonhoeffer, a estupidez não é uma mera falha intelectual, mas um fenômeno social e político que surge sob condições de opressão e conformismo. Sua análise não só explica como sociedades podem ser levadas a cometer atrocidades, como também nos alerta para a importância da resistência moral e intelectual em tempos de tirania.
A libertação da estupidez, como Bonhoeffer apontou, não se dá apenas pela educação ou pelo conhecimento. Ela exige um ato de emancipação, no qual o indivíduo recupera sua capacidade de pensamento crítico e, com ela, sua humanidade. No entanto, enquanto as condições que alimentam a estupidez persistirem — seja em regimes autoritários ou democracias vulneráveis à manipulação —, a tarefa de resistir à estupidez continua sendo uma luta permanente.
Como Bonhoeffer descobriu em sua própria vida, essa resistência pode ter um custo alto, mas é essencial para preservar a dignidade humana e a verdade em face do poder corrupto.
Nota: O texto de Dietrich Bonhoeffer, foi publicado originalmente no livro Widerstand und Ergebung. Briefe und Aufzeichnungen ausder Haft. A tradução é de Petronella Maria Boonen.
Indicação de leituras:
● Dietrich Bonhoeffer: Mártir do nazismo por Giorgio Cavalleri
● Bonhoeffer: Pastor, Mártir, Profeta, Espião por Eric Metaxas
Veja mais em:
https://youtu.be/v-vLi3l5DeE?si=cSwleT9KUiC5Jm_8
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