A Primeira Guerra Anglo-Afegã: Ambição, Insurgência e Humilhação Imperial
Conjuntura Histórica
Na Primavera de 1839, o Reino Unido, movido por ambições coloniais e preocupações geopolíticas, iniciou a sua primeira invasão ao Afeganistão, marcando o início da Primeira Guerra Anglo-Afegã (1839-1842). Este conflito é emblemático da complexa e frequentemente desastrosa política de intervenção imperial britânica no século XIX, revelando as profundas dificuldades enfrentadas ao tentar subjugar uma nação com uma longa história de resistência feroz contra invasores estrangeiros.
O Grande Jogo
O Contexto Global e o Papel da Ásia Central
Durante o século XIX, o mundo estava em plena expansão imperialista, com nações europeias competindo por territórios e recursos. O Reino Unido, em particular, possuía vastas colônias na Índia e buscava protegê-las contra ameaças de outras potências, especialmente a Rússia. Essa disputa entre britânicos e russos pela supremacia na Ásia Central ficou conhecida como o "Grande Jogo" – uma verdadeira "guerra fria" entre impérios, onde o Afeganistão, dada sua localização estratégica, tornou-se uma zona de interesse vital.
Enquanto a Rússia expandia seu controle sobre territórios ao norte e leste do Mar Cáspio e avançava na direção de Bukhara e Samarcanda, o Reino Unido temia que a próxima etapa da expansão russa levasse ao Afeganistão. Essa pressão motivou a Inglaterra a tentar consolidar o Afeganistão como um estado tampão, impedindo qualquer influência russa nas proximidades da Índia britânica.
Contexto Interno Afegão
O Afeganistão, uma nação de tribos guerreiras, tinha uma história de resistência a tentativas de unificação e controle centralizado. Em 1839, o trono afegão estava ocupado por Dost Mohammad Khan, um líder que os britânicos consideravam demasiado próximo dos russos. Para contrabalançar essa suposta ameaça, os britânicos decidiram depô-lo e reinstalar Shah Shuja ul-Mulk, um exilado que vivia na Índia sob proteção britânica.
A Invasão Britânica e a Ocupação
A Campanha de 1839
A invasão britânica começou em março de 1839, com um exército de cerca de 20.000 soldados britânicos e indianos atravessando a dura paisagem do Baluchistão e entrando no Afeganistão. A marcha foi árdua, enfrentando calor escaldante, falta de água e hostilidade da população local.
No entanto, inicialmente, a campanha teve sucesso. As forças britânicas, com sua superioridade em número e equipamento, conseguiram capturar Kandahar e, posteriormente, a fortaleza de Ghazni após um cerco violento. Em agosto de 1839, as tropas britânicas entraram em Cabul, e Shah Shuja foi reinstalado no trono sob a proteção britânica.
Geografia e Influência: As Difíceis Condições Afegãs
A geografia montanhosa do Afeganistão sempre foi um obstáculo natural contra invasores. Montanhas, vales profundos, desertos e um clima rigoroso contribuíram para que o país fosse difícil de ocupar. Essas características geográficas favoreciam a defesa do território e a resistência guerrilheira, com a população afegã conhecendo profundamente o terreno e utilizando-o estrategicamente contra invasores estrangeiros. A Campanha de 1839 enfrentou, por exemplo, as dificuldades do Baluchistão – onde calor e escassez de recursos naturais dificultaram a logística das tropas britânicas.
Esses aspectos não apenas complicavam a movimentação de exércitos estrangeiros, mas também fortaleciam o orgulho e a resistência afegã, unindo tribos de diferentes etnias contra qualquer tentativa de controle externo. Essa diversidade étnica e tribal era outra variável significativa, pois mesmo em períodos de conflitos internos, as tribos afegãs se uniam contra invasores, em um ciclo de resistência e confronto que se repetiria nas guerras subsequentes.
A Ocupação e a Insurgência
Apesar do sucesso inicial, a ocupação britânica do Afeganistão rapidamente se tornou problemática. Shah Shuja era amplamente visto como um fantoche dos britânicos, sem legitimidade ou apoio entre as diversas tribos afegãs. Além disso, a presença militar estrangeira e as tentativas de impor ordem e administração provocaram crescente resistência.
Em 1841, a situação se deteriorou drasticamente. A insatisfação generalizada culminou em uma insurreição em Cabul. Líderes tribais uniram-se sob a bandeira da jihad (guerra santa) contra os invasores infiéis. Ataques contra as forças de ocupação britânicas tornaram-se frequentes e intensos, e a posição britânica em Cabul tornou-se insustentável.
A Retirada e a Derrota
O Colapso Britânico
No final de 1841, os britânicos decidiram evacuar Cabul. Em janeiro de 1842, uma coluna de retirada composta por aproximadamente 4.500 soldados britânicos e indianos, acompanhados por cerca de 12.000 civis, incluindo mulheres e crianças, começou a árdua jornada para Jalalabad. Esta retirada é frequentemente lembrada como uma das mais desastrosas da história militar britânica.
A Jornada para Jalalabad
Os britânicos subestimaram completamente as dificuldades do terreno e a ferocidade dos ataques afegãos. A coluna enfrentou condições climáticas severas, com ventos gelados e nevascas, além de constantes emboscadas e ataques das tribos afegãs. A disciplina militar desmoronou, e a retirada rapidamente se transformou em um massacre.
Os relatos históricos descrevem cenas de horror e caos: soldados e civis caindo mortos de exaustão e frio, ataques implacáveis dos guerreiros afegãos, e a luta desesperada para sobreviver. Em poucos dias, a coluna foi virtualmente aniquilada. Apenas um punhado de sobreviventes conseguiu chegar a Jalalabad. O mais famoso desses sobreviventes foi o Dr. William Brydon, cuja chegada solitária e exausta à cidade se tornou um símbolo do desastre.
Consequências e Reflexões
A Humilhação Imperial
A Primeira Guerra Anglo-Afegã e a catastrófica retirada de Cabul representaram uma humilhação sem precedentes para o Império Britânico no século XIX. A derrota expôs as limitações do poder imperial britânico e a complexidade de tentar dominar uma nação com uma cultura e um terreno tão desafiadores como o Afeganistão.
A humilhação foi profunda e teve repercussões duradouras. A reputação militar britânica sofreu um golpe significativo, e houve uma reflexão profunda sobre as estratégias imperiais. No entanto, longe de desanimar futuras aventuras coloniais, a derrota em Cabul muitas vezes foi usada como uma lição sobre a necessidade de melhor preparação e compreensão das realidades locais em campanhas futuras.
O Impacto no Afeganistão
Para o Afeganistão, a derrota britânica foi um momento de afirmação nacional. Mostrou que, apesar das diferenças internas, as tribos afegãs podiam se unir contra um inimigo comum e repelir um dos exércitos mais poderosos do mundo. Este evento se tornou parte do mito nacional afegão de invencibilidade contra invasores estrangeiros.
O Legado da Primeira Guerra Anglo-Afegã
Reflexões sobre a Ambição Colonial
A Primeira Guerra Anglo-Afegã serve como uma poderosa parábola sobre a ambição colonial e as consequências da subestimação das complexidades culturais e geográficas de uma região. A crença britânica na sua capacidade de impor um governante fantoche e controlar o Afeganistão revela uma arrogância e uma falta de compreensão das realidades locais que continuam a ecoar em estudos sobre colonialismo e intervenção estrangeira.
O desastre também destaca a húbris imperial — a crença de que a superioridade tecnológica e militar poderia superar qualquer obstáculo. A realidade mostrou que o espírito de resistência de um povo, aliado ao conhecimento íntimo do seu próprio terreno, podia anular as vantagens aparentes de um exército invasor.
O Choque Cultural
A invasão e a ocupação britânicas também exemplificam o choque cultural profundo entre as forças coloniais e as sociedades locais. Os britânicos, com suas ideias de administração e ordem, encontraram uma cultura tribal complexa, com suas próprias regras de lealdade, honra e resistência. A tentativa de impor um sistema estrangeiro sem um entendimento adequado dessas nuances culturais resultou em uma insurgência que os britânicos estavam mal preparados para enfrentar.
O Segundo e o Terceiro Conflito Anglo-Afegão
A Segunda Guerra Anglo-Afegã (1878-1880)
Mais de três décadas após a Primeira Guerra Anglo-Afegã, o Reino Unido retornou ao Afeganistão em um novo contexto geopolítico. O avanço russo no Turquestão, com a anexação de territórios na Ásia Central, aumentou a paranoia britânica sobre uma possível invasão indiana. O Reino Unido, então, pressionou o Afeganistão a aceitar uma missão diplomática em Cabul, mas o governante afegão, Sher Ali Khan, recusou-se a recebê-la. Isso levou à Segunda Guerra Anglo-Afegã em 1878.
A invasão britânica começou com rapidez, e as tropas ocuparam importantes cidades, incluindo Kandahar e Cabul. No entanto, o conflito foi breve em comparação com a primeira guerra. A resistência afegã persistiu, com guerrilhas e emboscadas dificultando a permanência britânica. A guerra terminou em 1880 com a assinatura do Tratado de Gandamak, que forçou o Afeganistão a ceder parte do controle de sua política externa ao Reino Unido, embora a administração interna continuasse sob controle afegão.
A Terceira Guerra Anglo-Afegã (1919)
A Terceira Guerra Anglo-Afegã ocorreu em um contexto pós-Primeira Guerra Mundial, quando o Império Britânico estava enfraquecido e o movimento nacionalista crescia em várias regiões sob dominação colonial. Em 1919, o novo governante afegão, Amanullah Khan, decidiu desafiar o status quo imposto pelo Tratado de Gandamak, reivindicando a independência completa do Afeganistão.
A guerra começou com incursões afegãs na Índia britânica, e a reação do Reino Unido foi imediata, ainda que hesitante, dada a condição debilitada da Grã-Bretanha após a Grande Guerra. O conflito foi breve, mas culminou na assinatura do Tratado de Rawalpindi em agosto de 1919, no qual o Reino Unido finalmente reconheceu a independência do Afeganistão. Essa vitória consolidou a posição de Amanullah Khan e foi um marco na história do país, encerrando a série de intervenções britânicas no Afeganistão.
Lições para o Futuro
A Primeira Guerra Anglo-Afegã deixou lições importantes para futuras intervenções militares. A necessidade de entender as dinâmicas locais, de ganhar legitimidade e apoio das populações locais, e de evitar a subestimação do inimigo são ensinamentos que continuam a ser relevantes.
Infelizmente, essas lições nem sempre foram aprendidas ou aplicadas. O Afeganistão continuou a ser um campo de batalha para intervenções estrangeiras, com a invasão soviética na década de 1980 e a intervenção liderada pelos Estados Unidos no início do século XXI, ambas enfrentando desafios semelhantes aos enfrentados pelos britânicos no século XIX.
Conclusão
A Primeira Guerra Anglo-Afegã é um capítulo crucial na história do colonialismo britânico e nas relações internacionais da época. A invasão de 1839, motivada por ambições geopolíticas e medo da expansão russa, resultou em um desastre militar que revelou as limitações e os perigos da intervenção imperial.
A derrota britânica em 1842 não foi apenas uma humilhação militar, mas também um poderoso lembrete das complexidades culturais e políticas do Afeganistão. A resistência afegã demonstrou a força de um povo determinado a defender sua independência e identidade contra invasores estrangeiros.
O legado da Primeira Guerra Anglo-Afegã continua a ressoar, oferecendo lições valiosas sobre as armadilhas da ambição colonial, o impacto do choque cultural e a importância de uma compreensão profunda das realidades locais em qualquer intervenção militar. Ao olhar para a história, vemos que a húbris e a arrogância imperial frequentemente levam a consequências desastrosas, um tema que permanece relevante em nosso mundo contemporâneo de conflitos e intervenções.
Imagem: Representação de 1898 da última resistência dos sobreviventes do 44° Regimento de Infantaria de Sua Majestade em Gandamak.
Indicação de leituras:
● Breve História do Afeganistão de A a Z por Ricardo Alexandre
● O regresso de um Rei: A batalha pelo Afeganistão por William Dalrymple
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