O Mecanismo do Bode Expiatório


O conceito do bode expiatório, formulado pelo historiador, filósofo e teólogo René Girard (1923-2015), oferece uma lente poderosa para interpretar as dinâmicas de conflito e violência nas sociedades humanas. Fundamentado na ideia de que as comunidades canalizam suas tensões para um alvo comum – o "bode expiatório" –, esse mecanismo revela como a violência mimética, que surge da rivalidade e da emulação de desejos, encontra alívio temporário na exclusão ou na punição de um indivíduo ou grupo. Explorando exemplos históricos e atuais, este texto busca desdobrar as dimensões histórica, sociológica e filosófica do mecanismo do bode expiatório, bem como o papel simbólico e empírico do ódio dirigido ao "outro".

O Mecanismo do Bode Expiatório: Fundamentos Girardianos

Para Girard, o desejo humano é mimético: as pessoas não desejam coisas de forma isolada, mas imitam os desejos dos outros. Esse desejo leva a conflitos inevitáveis, pois diferentes indivíduos começam a competir pelos mesmos objetos ou status, o que gera tensão e rivalidade. Quando essa tensão atinge um ponto crítico, a violência pode se espalhar na sociedade, ameaçando sua coesão.

O mecanismo do bode expiatório age como uma "válvula de escape" para essa violência. Quando uma sociedade se encontra em crise, ela elege uma vítima – ou um grupo de vítimas – como responsável pelos seus males. Ao direcionar a violência para esse alvo específico, a comunidade experimenta um alívio temporário, restaurando sua paz interna através do sacrifício simbólico ou literal do bode expiatório. A escolha da vítima é, em grande parte, arbitrária, mas ela tende a recair sobre aqueles que já são marginalizados, "diferentes" ou vistos como uma ameaça.

Exemplos Históricos: A Repetição do Ciclo

Na Antiguidade, o conceito do bode expiatório estava presente em várias culturas, muitas vezes em formas ritualizadas. Na antiga cidade de Atenas, por exemplo, a prática do "pharmakos" consistia em escolher uma pessoa marginalizada para ser expulsa ou sacrificada durante períodos de crise, como pestes ou fome. Esse sacrifício simbolizava a purificação e proteção da cidade.

No judaísmo antigo, o termo "bode expiatório" deriva do rito descrito no Levítico, em que um bode era carregado com os pecados da comunidade ou de um indivíduo e depois expulso ao deserto de Azazel. Esse gesto transferia simbolicamente as culpas e restaurava a ordem e a pureza espiritual.

Durante a Idade Média, o mecanismo do bode expiatório foi amplamente utilizado para justificar perseguições contra os judeus, especialmente em períodos de peste e crise econômica. Acusados de envenenar poços e espalhar a peste negra, comunidades judaicas inteiras foram massacradas e expulsas de cidades europeias. Esse ódio simbólico e empírico, alimentado pelo medo e pela ignorância, proporcionava um alívio temporário para a ansiedade social, mas também perpetuava ciclos de violência e exclusão.

Exemplos Atuais: O Bode Expiatório na Era Moderna

Na contemporaneidade, o mecanismo do bode expiatório persiste, adaptado aos novos contextos sociais e tecnológicos. Em tempos de crise econômica, como recessões e desemprego em massa, a xenofobia tende a aumentar, com imigrantes e minorias étnicas frequentemente sendo responsabilizados pela insegurança econômica. O ódio coletivo se manifesta tanto nas políticas de imigração restritivas quanto na retórica populista, que constrói um "outro" como ameaça à estabilidade e ao "modo de vida".

Nas redes sociais, o mecanismo do bode expiatório também se manifesta no fenômeno dos linchamentos virtuais. Movidos pelo desejo de conformidade moral, indivíduos direcionam ódio e crítica a uma pessoa que simboliza algo indesejável ou reprovável. Em poucos minutos, uma situação aparentemente isolada pode desencadear uma avalanche de ódio coletivo, transformando a vítima em uma figura de expiação para as tensões e frustrações de toda uma comunidade online.

A Contribuição do Ódio Simbólico e Empírico

O ódio, tanto simbólico quanto empírico, é essencial para o funcionamento do mecanismo do bode expiatório. Simbolicamente, o ódio atua como um catalisador que direciona a tensão interna da sociedade para fora, canalizando a violência para um alvo específico. A presença de um inimigo comum facilita a coesão interna do grupo e cria uma narrativa de "nós contra eles", tornando a exclusão ou a violência mais fácil de justificar.

Empiricamente, o ódio ao bode expiatório se traduz em ações concretas: perseguições, exclusões, violências simbólicas e físicas. O ódio materializa o impulso de purificação social, transformando o alvo escolhido em uma representação de tudo o que a sociedade deseja erradicar. Esse processo, no entanto, é frequentemente cíclico, uma vez que a exclusão ou a eliminação de uma vítima não resolve as tensões subjacentes que, eventualmente, voltarão a se manifestar. Segundo René Girard:

Falo aqui apenas de perseguições coletivas ou com ressonâncias coletivas. Por perseguições coletivas entendo as violências cometidas diretamente por multidões assassinas, como o massacre dos judeus durante a peste negra. Por perseguições com ressonâncias coletivas entendo as violências do tipo caça às bruxas, legais em suas formas, mas geralmente encorajadas por uma opinião pública superexcitada. A distinção, por outro lado, não é essencial. Os terrores políticos, principalmente os da Revolução Francesa, frequentemente participam de um e de outro tipo. As perseguições que nos interessam se desenvolvem de preferência em períodos de crise que provocam o enfraquecimento de instituições normais e favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer uma pressão decisiva sobre classe. 

Não são sempre as mesmas circunstâncias que favorecem tais fenômenos. Por vezes são causas externas, como as epidemias ou ainda a seca extrema, ou a inundação, que acarretam uma situação de fome. Outras vezes são causas internas, como agitações políticas ou conflitos religiosos. A determinação de causas reais, felizmente, não se coloca para nós. Quais sejam, com efeito, as causas verdadeiras, as crises que desencadeiam as grandes perseguições coletivas são sempre vividas mais ou menos do mesmo modo por aqueles que as sofrem. A impressão mais viva é invariavelmente a de uma perda radical do próprio social, fim das regras e das "diferenças" que definem as ordens culturais.[...]

Interpretação Histórica

Historicamente, o mecanismo do bode expiatório reflete a luta contínua das sociedades para lidar com conflitos internos sem se autodestruir. A repetição de sacrifícios simbólicos e rituais, como visto nas culturas antigas, demonstra que o processo de culpar um "outro" não é apenas uma medida de curto prazo, mas uma ferramenta estrutural para a manutenção da ordem social.

Interpretação Sociológica

Sociologicamente, o conceito do bode expiatório evidencia a necessidade de coesão e identidade coletiva. A sociedade cria fronteiras claras entre "nós" e "eles", o que fortalece o senso de pertencimento dentro do grupo dominante. A escolha de um grupo ou indivíduo como bode expiatório permite à comunidade criar narrativas de superioridade e justificação, reforçando papéis sociais e hierarquias.

Interpretação Filosófica

Filosoficamente, Girard argumenta que a compreensão do mecanismo do bode expiatório é fundamental para o desenvolvimento ético das sociedades. Ao perceber o ciclo de violência mimética e reconhecer a arbitrariedade do bode expiatório, a humanidade tem a oportunidade de transcender suas práticas violentas. A compreensão desse ciclo convida à empatia e ao questionamento das narrativas que justificam o ódio coletivo, propondo a possibilidade de uma convivência que não dependa de mecanismos de exclusão e violência.

Conclusão

O mecanismo do bode expiatório, como formulado por Girard, oferece uma perspectiva profunda sobre os conflitos humanos e a função do ódio simbólico e empírico na coesão social. Ao transferir a violência para um alvo externo, as sociedades aliviam suas tensões, mas apenas temporariamente, perpetuando ciclos de exclusão e injustiça. A análise histórica, sociológica e filosófica do fenômeno nos revela não apenas como o mecanismo opera, mas também como ele pode ser superado através da conscientização, do questionamento ético e da busca por formas mais inclusivas de coexistência.


Indicação de leitura:

● O Bode Expiatório por René Girard 

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