
Machado de Assis (1839-1908) é amplamente reconhecido como um dos maiores críticos da sociedade brasileira do século XIX, um observador perspicaz das complexidades humanas e das estruturas de poder e desigualdade que permeavam a vida no Brasil imperial. O conto "Suje-se gordo!", publicado na coletânea Relíquias da Casa Velha (1906), é um exemplo claro do estilo machadiano de crítica social, no qual elementos aparentemente triviais são utilizados para expor questões profundas e inquietantes sobre a justiça, a moralidade e as dinâmicas de poder social. Neste texto, analisaremos como Machado de Assis, com sua ironia característica e olhar crítico, constrói uma narrativa que revela as tensões e contradições do sistema judicial, a hipocrisia da moral burguesa e os conflitos éticos do indivíduo diante das estruturas sociais.
O Contexto da Justiça no Século XIX
O conto se desenrola em torno de um tribunal do júri, uma instituição que, em tese, deveria ser um pilar da justiça democrática e igualitária. No entanto, Machado utiliza o cenário para criticar a falibilidade do sistema judicial e as contradições de seus agentes. O narrador, que também é jurado, inicia o conto declarando seu desconforto com a ideia de julgar outros, baseando-se no preceito evangélico “Não queirais julgar para que não sejais julgados.” Essa referência bíblica, que ecoa um ideal de humildade e compaixão, contrasta com as decisões que ele toma ao longo da narrativa, revelando a distância entre os princípios morais declarados e as práticas reais.
A estrutura do tribunal e a dinâmica entre os jurados, o promotor e o defensor são descritas de forma a expor as falhas humanas que permeiam o sistema. O promotor é apresentado como alguém cujo discurso “parecia ódio, e não era”, indicando uma postura que mistura paixão e racionalidade, mas que frequentemente ultrapassa os limites da imparcialidade. Por outro lado, o advogado de defesa, jovem e promissor, utiliza todo o seu talento retórico para tentar salvar o réu, mas esbarra na rigidez das provas e na predisposição condenatória dos jurados. Essa interação entre os atores do julgamento evidencia a teatralidade do tribunal e o quanto a justiça é, muitas vezes, uma questão de aparência e de convencimento emocional, mais do que de verdade objetiva.
A Frase “Suje-se gordo!” e sua Significação
O ponto alto do conto, e o que dá título à narrativa, é a frase proferida pelo jurado Lopes: “Suje-se gordo!” A expressão, aparentemente vulgar e despropositada, carrega um peso simbólico que Machado explora ao longo do texto. Lopes sugere que, se alguém pretende cometer um crime, deve fazê-lo de forma grandiosa, para que a recompensa compense o risco e a vergonha. Na visão de Lopes, o pequeno furto, “uma miséria, duzentos mil réis”, não justifica a transgressão moral e legal, sendo, portanto, um ato de mediocridade.
Essa frase encapsula a crítica de Machado à hipocrisia da sociedade burguesa da época. O jurado Lopes não demonstra indignação com o ato criminoso em si, mas com o fato de o crime ser “reles” e de baixa escala. Essa visão reflete a lógica da sociedade brasileira de então, marcada por uma desigualdade profunda, na qual pequenos crimes cometidos por indivíduos de classes mais baixas eram duramente punidos, enquanto crimes de grande escala, muitas vezes cometidos por elites econômicas e políticas, eram ignorados ou minimizados.
Machado também nos leva a refletir sobre o peso moral que se atribui aos atos humanos. Ao enfatizar que o crime deveria ser “grande”, Lopes, na verdade, relativiza a questão ética, deslocando o julgamento do ato em si para a escala de sua execução. Essa relativização denuncia a forma como a sociedade e seus agentes muitas vezes tratam a justiça de maneira desigual, baseando-se em critérios arbitrários e subjetivos.
O Ciclo da Culpa e a Condição Humana
Outro aspecto crucial do conto é a circularidade da narrativa, que se manifesta na reviravolta final, quando o próprio Lopes, outrora jurado e acusador, aparece como réu em um julgamento posterior. Essa inversão de papéis materializa a máxima bíblica mencionada no início do conto: “Não queirais julgar para que não sejais julgados.” Machado utiliza esse recurso narrativo para reforçar a fragilidade e a transitoriedade da posição moral de cada indivíduo.
A transformação de Lopes de jurado a réu também levanta questões sobre a culpa e a condição humana. Lopes, que antes condenava com veemência um jovem por um crime menor, agora é acusado de um desfalque financeiro de grande monta. Essa mudança de escala no crime ecoa ironicamente a frase “Suje-se gordo!” e expõe a complexidade das motivações humanas. Lopes, antes tão zeloso em defender a moralidade do julgamento, agora é o alvo do mesmo sistema que outrora utilizou para punir.
Essa circularidade narrativa reflete a visão machadiana da vida como um teatro de repetição, no qual os indivíduos são simultaneamente vítimas e agentes das estruturas sociais que os aprisionam. A figura do narrador, que inicialmente se apresenta como um observador crítico e imparcial, também é capturada por esse ciclo, pois reconhece a dificuldade de julgar com justiça e confessa suas próprias contradições e arrependimentos.
Machado de Assis e a Crítica ao Sistema de Classes
“Suje-se gordo!” também pode ser lido como uma alegoria das desigualdades sociais e econômicas do Brasil do século XIX. A sociedade brasileira da época era profundamente hierarquizada, com elites econômicas e políticas desfrutando de privilégios e impunidades, enquanto as classes mais baixas enfrentavam um sistema opressivo e excludente. No conto, essa desigualdade é expressa na diferença de tratamento entre os crimes menores, como o pequeno furto, e os crimes maiores, como o desfalque de uma instituição financeira.
O narrador, ao descrever o julgamento de Lopes, menciona que a votação dos jurados resultou na absolvição do réu, apesar das evidências contundentes de seu crime. Essa decisão reflete a forma como o status social e as conexões influenciam os resultados judiciais, muitas vezes em detrimento da verdade e da justiça. Lopes, que era jurado no primeiro caso, representa o poder e o privilégio das elites, que julgam com severidade os delitos das classes baixas, mas são protegidas quando cometem crimes de maior escala.
A Ironia e o Estilo Machadiano
A ironia é uma das principais ferramentas de Machado de Assis em suas obras, e em “Suje-se gordo!” ela é utilizada de forma magistral. A frase que dá título ao conto, ao mesmo tempo que parece trivial e cômica, encapsula uma crítica mordaz à moralidade burguesa e às contradições do sistema judicial. Machado expõe, de maneira sutil, a hipocrisia de uma sociedade que valoriza mais a aparência e o status do que os princípios éticos.
Além disso, o estilo narrativo de Machado, com sua prosa introspectiva e digressiva, permite ao leitor mergulhar nos pensamentos e conflitos do narrador. Essa abordagem introspectiva humaniza os personagens e revela as nuances de suas motivações e dilemas. O narrador, com suas reflexões sobre a justiça e a moralidade, serve como um espelho para o leitor, que é convidado a questionar suas próprias convicções e preconceitos.
Conclusão
Em “Suje-se gordo!”, Machado de Assis utiliza uma narrativa aparentemente simples para explorar questões profundas sobre a justiça, a moralidade e as desigualdades sociais. O conto é, ao mesmo tempo, uma crítica ao sistema judicial e um retrato das contradições da condição humana, marcada por erros, hipocrisias e limitações. A frase que dá título ao conto funciona como um símbolo das tensões e ambiguidades que permeiam a vida em sociedade, onde as noções de certo e errado são frequentemente influenciadas por fatores externos, como o status social e o contexto econômico.
Por meio de sua prosa irônica e reflexiva, Machado nos desafia a confrontar nossas próprias falhas e preconceitos, mostrando que, no final, todos somos vulneráveis às mesmas fraquezas que condenamos nos outros. O conto permanece relevante até os dias de hoje, servindo como um lembrete da importância de questionar as estruturas de poder e os valores que guiam nossas ações e julgamentos.
O conto:
Uma noite, há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do teatro de São Pedro de Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.
— Fui sempre contrário ao júri — disse-me aquele amigo — não pela instituição em si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho: Não queirais julgar para que não sejais julgados. Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.
Tal era o meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram muito mal feitos. O primeiro réu que condenei era um moço limpo, acusado de haver furtado certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou o fato, nem podia fazê-lo; contestou que lhe coubesse a iniciativa ou inspiração do crime. Alguém, que não citava, foi quem lhe lembrou esse modo de acudir a uma necessidade urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com tal palidez que metia pena. O promotor público achou nessa mesma cor do gesto a confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência caluniada.
Poucas vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto, mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estreia dele na tribuna. Parentes, colegas e amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O discurso foi admirável e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais do que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando.
Houve réplica do promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do conselho, que era eu.
Não digo o que se passou na sala secreta; além de ser secreto o que lá se passou, não interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso. Contarei depressa; o terceiro ato não tarda.
Um dos jurados do conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido do delito e do delinquente. O processo foi examinado, os quesitos lidos e as respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara pela negativa, proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo — chamava-se Lopes — replicou com aborrecimento:
— Como, senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
— Deixemos de debate — disse eu, e todos concordaram comigo.
— Não estou debatendo, estou defendendo o meu voto — continuou Lopes. O crime está mais que provado. O sujeito nega, porque todo réu nega, mas o certo é que ele cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil réis! Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Suje-se gordo! Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao contrário; nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de boca aberta.
Afinal, caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz, dei as respostas do conselho, e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. Suje-se gordo! Era como se dissesse que o condenado era mais que um ladrão, era um ladrão reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de São Pedro. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo, nem me ficou de cor.
Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras, esquecidas apenas lidas.
Bravo 👏🏻 👏🏻 👏🏻 Viva Machado de Assis!
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