Análise de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"


Publicado originalmente em 1880 como folhetim na "Revista Brasileira" e consolidado em livro em 1881, "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, é considerado um marco na literatura brasileira e mundial. Este romance não apenas introduz o estilo realista de Machado, mas também revoluciona a narrativa tradicional ao apresentar um narrador defunto e uma estrutura livre de linearidade.

1. Introdução e Estrutura Narrativa

O romance inicia-se com uma dedicatória peculiar: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico estas memórias póstumas.” Com ironia e humor ácido, Machado subverte a ideia de um narrador tradicional, apresentando Brás Cubas, que escreve suas memórias após a morte. Essa introdução desconcertante estabelece o tom da obra, caracterizado pela mistura de melancolia e sarcasmo, enquanto o narrador promete um relato despido de idealizações. 

A estrutura não linear, composta por capítulos curtos e desconexos, reflete a liberdade narrativa que Brás Cubas reivindica. Ele próprio afirma ter escrito com “a pena da galhofa e a tinta da melancolia”, indicando o equilíbrio entre o cômico e o trágico que permeia toda a obra. Essa forma fragmentada, inspirada por autores como Laurence Sterne (Tristram Shandy) e Xavier de Maistre (Viagem à roda do meu quarto), permite a inclusão de reflexões filosóficas e episódios aparentemente aleatórios, mas carregados de significado.

2. Contexto Histórico e Literário

Machado de Assis escreve Memórias Póstumas durante o período de transição do Romantismo para o Realismo na literatura brasileira. Publicado antes da instauração da Lei Áurea e em um Brasil ainda monárquico na cidade do Rio de Janeiro, o livro critica ironicamente as instituições, os valores burgueses e a hipocrisia social. O autor abandona os ideais românticos de heroísmo e amor sublime, substituindo-os por uma visão desencantada e cínica da sociedade.

A obra também dialoga com temas universais, como a efemeridade da vida, a busca pelo sentido da existência e a corrupção moral, estabelecendo um vínculo entre o microcosmo brasileiro e questões filosóficas globais.

3. Análise do Narrador e da Personagem Principal

Brás Cubas é um narrador e protagonista atípico, pois narra sua vida após a morte. Esse “defunto autor” representa a elite brasileira do século XIX, vivendo de forma parasitária e alheia aos problemas sociais. Ele é um produto da sociedade escravocrata e patriarcal, desfrutando de privilégios enquanto negligencia qualquer responsabilidade ética.

- Ironia e Subversão: Brás Cubas narra com humor mordaz, frequentemente expondo suas fraquezas e contradições. Ele é vaidoso, egoísta e frívolo, mas sua autoconsciência proporciona momentos de crítica social afiada.

- Pessimismo Filosófico: Influenciado por Schopenhauer, o narrador explora a futilidade das ambições humanas e a inevitabilidade do sofrimento. No entanto, ele trata esses temas com leveza cínica, criando um contraste entre a gravidade das ideias e o tom descontraído.

4. Personagens Secundários e Relações

Os coadjuvantes são representações de arquétipos e funcionam como espelhos das críticas sociais de Machado:

- Virgília: Amante de Brás Cubas, ela encarna a hipocrisia e a ambição. Sua relação extraconjugal com o narrador reflete a superficialidade dos valores da elite.

- Quincas Borba: Filósofo excêntrico e criador da teoria do Humanitismo, Quincas Borba simboliza a sátira ao pensamento filosófico. Sua amizade com Brás Cubas é marcada por momentos tragicômicos.

- Dona Plácida e Marcela: Representam diferentes formas de exploração e desigualdade social. Marcela, por exemplo, é uma cortesã cuja “paixão” por Brás é sustentada por interesses financeiros.

5. Temas Centrais

5.1. A Morte e a Vida

A narrativa é construída a partir de um ponto de vista pós-morte, o que permite uma reflexão única sobre a vida. Para Brás Cubas, a morte não é trágica, mas uma oportunidade para olhar sua existência com distanciamento crítico. Ele reconhece a banalidade de sua vida e conclui que a busca por glória e felicidade é uma ilusão.

5.2. Crítica à Sociedade

Machado desconstrói as instituições da época, como a família, o casamento e a religião, revelando sua hipocrisia e fragilidade. O autor questiona a superficialidade dos valores burgueses e a perpetuação das desigualdades sociais.

5.3. Filosofia e Humanitismo

A teoria do Humanitismo, apresentada por Quincas Borba, parodia filosofias contemporâneas como o positivismo e o determinismo. Essa teoria absurda, que celebra a sobrevivência do mais forte, é uma metáfora para a indiferença moral da sociedade.

6. Estilo Literário

Machado de Assis utiliza uma linguagem rica e multifacetada, marcada por:

- Ironia e Humor: Elementos-chave da obra, que desarmam o leitor e criam camadas de significado.

- Metalinguagem: O narrador frequentemente interrompe a narrativa para dialogar com o leitor, expondo a artificialidade do texto.

- Fragmentação: A estrutura episódica reforça o tom experimental e reflete a liberdade narrativa.

- Crítica Implícita: Machado evita ataques diretos, preferindo sutilezas que convidam o leitor a interpretar.

7. Impacto e Legado

Memórias Póstumas de Brás Cubas é amplamente reconhecido como um marco da literatura mundial, comparado a obras de Dostoiévski e Cervantes. Ele não apenas inaugura o Realismo no Brasil, mas também redefine o romance como um espaço de experimentação e reflexão filosófica.

O livro continua relevante por sua abordagem universal de temas como o egoísmo, a busca por sentido e a hipocrisia social. A figura de Brás Cubas ressoa com leitores modernos, que se veem confrontados com as mesmas questões existenciais e dilemas éticos.

Conclusão

Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra-prima que transcende seu tempo. Com uma narrativa inovadora, personagens complexos e reflexões filosóficas profundas, Machado de Assis desafiou convenções e criou um romance que permanece atual e provocativo. O humor ácido e a visão desencantada de Brás Cubas oferecem ao leitor não apenas um retrato crítico da sociedade brasileira do século XIX, mas também um convite à introspecção sobre a condição humana.


O emplastro Brás Cubas é uma metáfora central em Memórias Póstumas de Brás Cubas e encapsula diversos significados dentro da narrativa, tanto em relação ao protagonista quanto aos temas maiores da obra.  

1. O Emplastro como Símbolo da Vaidade e do Egocentrismo

A ideia do emplastro é apresentada como uma invenção revolucionária de Brás Cubas, destinada a curar a melancolia humana. No entanto, o real motivo por trás do projeto não é a filantropia, mas o desejo do narrador de imortalizar seu nome. A frase que ele idealiza para estampar nas caixinhas do remédio, "Emplastro Brás Cubas", revela sua vaidade e obsessão com o reconhecimento social.  

Brás Cubas admite:  

“Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplastro Brás Cubas.”

O emplastro, assim, simboliza o egoísmo humano, a busca por glória pessoal e a futilidade dessas ambições diante da inevitabilidade da morte.

2. Crítica à Ilusão de Progresso

O projeto do emplastro reflete a crença, comum na época, no progresso científico e na capacidade da humanidade de resolver seus problemas por meio da ciência. No entanto, Machado de Assis trata essa ideia com ironia, sugerindo que muitas dessas aspirações são vazias ou egoístas. A proposta do emplastro anti-hipocondríaco, embora grandiosa, não passa de uma ideia absurda e inalcançável, tal como muitas promessas de cura ou de progresso social.  

3. A Tragédia do Idealismo Fútil

Brás Cubas considera o emplastro uma ideia "grandiosa e útil", mas ela acaba contribuindo para sua morte. Em sua obsessão por desenvolver o projeto, ele descuida de sua saúde e sucumbe à pneumonia. Esse desfecho irônico subverte a ideia de que os grandes sonhos sempre levam a realizações e reforça o pessimismo filosófico de Machado de Assis.  

O emplastro, portanto, é também uma metáfora para os ideais humanos que, em última instância, podem se revelar inúteis ou autodestrutivos.

4. Reflexão sobre a Futilidade Humana

O emplastro também dialoga com o tom geral do livro, que enfatiza a insignificância da vida humana e das ambições pessoais. Mesmo após sua morte, Brás Cubas não deixa nenhum legado significativo; sua ideia grandiosa nunca foi realizada, e ele reflete sobre sua vida com desencanto. O emplastro representa, assim, a futilidade das aspirações humanas e a irrelevância de nossos esforços no grande esquema das coisas.  

5. Humor e Ironia

Machado de Assis utiliza o emplastro como um recurso humorístico. A ideia de um remédio universal contra a melancolia é absurda, e a obsessão de Brás Cubas com a fama torna-se cômica. Esse tom leve, porém, esconde reflexões profundas sobre a condição humana e o papel das vaidades individuais na história.

Conclusão

O emplastro Brás Cubas é um artifício literário que simboliza a vaidade, o egoísmo, as ilusões de grandeza e a futilidade das ambições humanas. Sua inutilidade final ressalta o pessimismo da obra e a visão desencantada de Machado de Assis sobre o mundo. Por meio dessa metáfora, o autor critica a hipocrisia social e filosófica de sua época, convidando o leitor a refletir sobre a fragilidade e o absurdo da condição humana.


Personagens Principais de Memórias Póstumas de Brás Cubas e suas funções na narrativa

Memórias Póstumas de Brás Cubas é repleta de personagens que, além de enriquecerem a trama, servem como ferramentas para a crítica social e filosófica de Machado de Assis. Cada figura desempenha um papel específico, refletindo aspectos da sociedade brasileira do século XIX e contribuindo para o desenvolvimento temático da obra.

1. Brás Cubas 

Função: Narrador-protagonista.  

Brás Cubas, o “defunto autor”, narra sua vida e seus erros com humor e ironia. Representa a elite ociosa e parasitária, vivendo alheio às responsabilidades sociais. É egoísta, frívolo e vaidoso, mas a sua autoconsciência e a honestidade brutal sobre seus defeitos tornam-no uma figura única e cativante. Sua morte e sua condição de narrador póstumo permitem uma visão desencantada e crítica da existência, em que questiona os valores de sua época, o papel das instituições e a busca pelo significado da vida.

2. Virgília  

Função: Amante e símbolo da hipocrisia social.  

Virgília, o grande amor de Brás Cubas, é casada com Lobo Neves, mas mantém um relacionamento extraconjugal com o narrador. Ela é uma mulher ambiciosa, vaidosa e pragmática, que busca ascender socialmente. Representa a superficialidade das relações humanas e a corrupção moral da sociedade. Sua relação com Brás não é marcada pelo amor verdadeiro, mas pela conveniência e pelo desejo de escapar do tédio.

3. Marcela  

Função: Símbolo da paixão interesseira.  

Marcela é uma cortesã que, no início da vida de Brás Cubas, o seduz e manipula em troca de presentes e luxos. Seu famoso trecho, “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”, sintetiza a ideia de que o amor, na obra, é frequentemente condicionado por interesses materiais. Ela encarna a futilidade e o hedonismo.

4. Quincas Borba

Função: Filósofo e catalisador do humor e da crítica filosófica.  

Amigo de Brás Cubas, Quincas Borba é um excêntrico criador da teoria do Humanitismo, que parodia doutrinas filosóficas da época, como o positivismo e o determinismo. Ele traz leveza à narrativa, mas também evidencia o absurdo do comportamento humano e das explicações metafísicas que tentam justificar a crueldade e o egoísmo.

5. Dona Plácida

Função: Representação da exploração social e da subserviência.  

Dona Plácida é uma mulher pobre que aceita ser cúmplice do caso entre Brás e Virgília ao fornecer sua casa para os encontros do casal. Ela é explorada pelas classes mais altas, mas sua submissão também reflete a resignação com as injustiças sociais. Sua figura humaniza as consequências da desigualdade e da dominação.

6. Lobo Neves 

Função: Símbolo da ambição e da política de aparências.  

Marido de Virgília, Lobo Neves é um político ambicioso e calculista. Apesar de desconfiar da traição de sua esposa, ele a mantém por conveniência, valorizando as aparências e a estabilidade social. Representa a hipocrisia das relações públicas e privadas, sendo um retrato fiel do homem político de sua época.

7. Sabina e Cotrim 

Função: Retrato da mediocridade burguesa.  

Sabina, irmã de Brás Cubas, e seu marido Cotrim são exemplos do estilo de vida medíocre e materialista da burguesia. Eles são figuras pequenas, preocupadas com questões banais, mas servem para reforçar a crítica machadiana à frivolidade da classe média.

8. Eugênia

Função: Símbolo da rejeição social.  

Eugênia é uma jovem com deficiência física e, por isso, rejeitada como possível pretendente por Brás Cubas. Sua exclusão evidencia os preconceitos sociais e estéticos da época, demonstrando como a busca por status prevalece sobre os sentimentos ou a empatia.

9. Nhonhô

Função: Reflexo da continuidade da elite improdutiva.  

Filho de Virgília, Nhonhô aparece como uma figura menor, mas significativa. Ele simboliza a continuidade do ciclo de privilégio e egoísmo entre a elite, com pouco ou nenhum interesse em romper com as tradições.

10. Prudêncio  

Função: Exposição da desigualdade racial e da hipocrisia.  

Prudêncio é um ex-escravo da família Cubas que, ao longo da narrativa, reproduz o sistema de opressão ao adquirir um escravo para si. Sua trajetória reflete o impacto da escravidão no Brasil e a perpetuação de práticas desumanas, mesmo entre aqueles que foram vítimas do sistema.

11. O Tio Cônego e o Tio João 

Função: Contrapontos na formação de Brás Cubas.  

- Tio Cônego: Figura religiosa que representa a moral rígida e conservadora, mas sem grande profundidade. Ele tenta, sem sucesso, influenciar Brás.

- Tio João: Um libertino que expõe Brás Cubas a um mundo de prazeres mundanos e reforça seu comportamento frívolo.

12. Dona Eusébia e Dr. Vilaça

Função: Crítica aos costumes e à superficialidade.  

Esses personagens secundários estão envolvidos em episódios que revelam a hipocrisia e os pequenos escândalos da elite. Suas ações reforçam o tom cômico e crítico da obra.

Conclusão  

As personagens de Memórias Póstumas de Brás Cubas não são apenas figuras literárias, mas instrumentos de crítica social e moral. Machado de Assis utiliza cada um deles para explorar temas como a hipocrisia, o egoísmo, as desigualdades sociais e a busca por status. Ao combinar humor e reflexão, essas figuras tornam-se atemporais, proporcionando insights sobre a condição humana e as estruturas sociais.


Nota:

●Sinopse do filme Memórias Póstumas (2001): 

Baseado no clássico romance de Machado de Assis, Memórias Póstumas (2001), dirigido por André Klotzel, é uma adaptação que mistura ironia, humor e melancolia para explorar a vida e a morte de Brás Cubas, um homem da elite brasileira do século XIX. Narrado pelo próprio Brás Cubas após sua morte, o filme apresenta suas memórias, desde a infância até a velhice, revelando uma trajetória repleta de vaidades, amores frustrados e fracassos.  

Enquanto revisita momentos marcantes de sua vida, como o romance proibido com Virgília e sua tentativa de criar o "emplastro Brás Cubas", o protagonista expõe, com sarcasmo, as hipocrisias e as contradições da sociedade da época. A obra cinematográfica mantém o tom ácido e filosófico do livro, refletindo sobre a futilidade das ambições humanas, as desigualdades sociais e a busca incessante por glória.  

Com uma narrativa não linear e interpretações marcantes, Memórias Póstumas é uma viagem crítica e poética pela condição humana, mesclando fidelidade ao texto original com uma linguagem visual rica e envolvente.

●Assista ao filme clicando no link:

https://youtu.be/dDsA2pAiELw?si=NOrNIJsl0HJWos7p

●Para baixar e ler a edição de 1881, basta clicar no link:

https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4826


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