"Conversa de compra de passarinho": Uma análise da crônica de Rubem Braga


A crônica “Conversa de compra de passarinho”, de Rubem Braga (1913-1990), é um retrato pungente da condição humana, costurado com ironia, lirismo e um sutil tom de denúncia social. Por meio de uma cena simples em uma venda de interior, Braga aborda com profundidade questões universais como desigualdade, exploração, liberdade e dignidade. Através de personagens cotidianos — o velho avarento, o menino pobre e o narrador reflexivo —, o autor constrói uma crítica à insensibilidade e ao sistema que perpetua a desigualdade.

1. A venda como microcosmo social 

A cena inicial da crônica apresenta um cenário prosaico: um estabelecimento rural, um vendedor, um cliente e um menino. No entanto, sob a simplicidade da situação, Braga estrutura uma metáfora que extrapola aquele espaço, revelando as engrenagens de uma sociedade marcada pela exploração e pela desigualdade. O velho comerciante, que representa a figura do poder local, domina a narrativa com sua atitude arrogante e avarenta. Ele exerce controle sobre os outros personagens — seja ao ditar os preços da lenha do menino, seja ao manipular o valor simbólico do coleiro.  

O menino, por sua vez, representa a classe trabalhadora, explorada e desprovida de escolhas. Ele corta, carrega e vende a lenha, mas não possui qualquer autonomia no processo de negociação. Sua hesitação ao dizer o preço inicial (“quarenta”) e sua aceitação final do valor ínfimo (vinte e cinco cruzeiros) revelam o ciclo de submissão em que está preso. Não há espaço para reivindicações ou resistência; há apenas resignação.

2. O coleiro como símbolo de liberdade perdida 

O coleiro, o pequeno passarinho em uma gaiola, assume um papel simbólico central na crônica. Ele é a representação da liberdade cerceada, da natureza que foi domada e transformada em mercadoria. A descrição de seu canto, que deveria ser um sinal de vida e alegria, torna-se irônica diante de sua condição de cativeiro: “Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade.”  

O coleiro é o espelho do menino: ambos são frutos de um sistema de exploração que transforma o livre em servil. Assim como o coleiro foi capturado por outro menino para ser vendido por um preço insignificante ao comerciante, o garoto da lenha também é explorado, sem perspectiva de escapar de sua condição.

3. O velho comerciante: a personificação da exploração 

O comerciante é o antagonista da crônica, personificando a exploração sistêmica. Sua postura diante do menino é de superioridade e desprezo: “O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: ‘Quanto?’” Essa indiferença não é apenas individual, mas reflete uma estrutura social em que a dignidade humana é negligenciada em favor do lucro e do poder.  

Sua relação com o coleiro reforça esse ponto. Ele eleva o valor do passarinho a níveis exorbitantes, explorando o narrador e tentando convencê-lo da excepcionalidade do animal. Contudo, o narrador percebe que essa valorização não passa de um artifício: “Sei que o velho está mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda.” O comerciante é, assim, a figura do opressor que vê tanto pessoas quanto animais como objetos de transação.

4. O narrador como observador e crítico 

O narrador, que entra na venda como um cliente qualquer, assume o papel de observador crítico da cena. Ele não intervém diretamente, mas suas reflexões e ações pontuam a crônica com um tom moral. Quando o menino cede à oferta de vinte e cinco cruzeiros, o narrador sente uma vontade de vingá-lo, mas percebe a impotência dessa vontade: “Tenho vontade de vingá-lo.”  

O narrador também desvela a hipocrisia do comerciante, questionando-o de forma sarcástica sobre o coleiro: “Foi o senhor quem pegou ele?” Essa pergunta, embora simples, é carregada de implicações. Ela expõe o fato de que o comerciante é apenas um intermediário, um explorador que se aproveita do trabalho alheio — neste caso, do menino que capturou o pássaro.  

Além disso, o narrador faz uma conexão metafísica ao final da crônica, projetando um destino de justiça cósmica: “Daqui a uns anos, quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu — trotando, assobiando e cantando de pura alegria.” Essa visão transcendente não apenas ironiza a ganância do comerciante, mas também eleva as figuras do menino e do coleiro à condição de seres sagrados.

5. Ironia e tragédia na narrativa  

A ironia é um recurso fundamental na escrita de Rubem Braga, e nesta crônica ela aparece de forma contundente. O contraste entre a liberdade que o coleiro deveria simbolizar e sua condição de cativeiro é profundamente irônico, assim como a discrepância entre o esforço do menino para cortar e carregar lenha e a remuneração miserável que recebe.  

Há também um tom trágico na resignação do menino e na inutilidade das ações do narrador. Apesar de sua percepção crítica, o narrador não consegue alterar a dinâmica da exploração, limitando-se a pequenas provocações e reflexões internas. Essa impotência reflete a própria condição humana diante das grandes estruturas de poder e desigualdade.

6. Crítica social e universalidade

Embora ambientada em um contexto rural e específico, a crônica transcende esse espaço e tempo ao abordar questões universais. O sistema de exploração descrito na venda pode ser visto como um microcosmo do capitalismo, em que os recursos naturais (a lenha, o coleiro) e o trabalho humano (o esforço do menino) são apropriados por uma figura que detém o poder econômico (o comerciante).  

A crítica de Braga não se limita à figura do comerciante; ela se estende a todos que, de alguma forma, perpetuam ou se beneficiam desse sistema. Até mesmo o narrador, ao hesitar em intervir diretamente, é cúmplice de certa forma. Essa complexidade torna a crônica mais rica, evitando uma leitura simplista de mocinhos e vilões.

 7. A relação entre homem e natureza

Outro tema central da crônica é a relação entre o homem e a natureza. O coleiro, enquanto símbolo de liberdade, é reduzido a uma mercadoria, assim como a lenha que o menino corta. Essa redução reflete a visão utilitarista que muitas vezes domina a relação humana com o meio ambiente, em que tudo é visto como um recurso a ser explorado.  

No entanto, Braga também sugere uma dimensão sagrada nessa relação. Ao afirmar que o coleiro “devia ser um pequeno animal sagrado e livre”, ele resgata uma visão mais humanista e respeitosa da natureza, contrastando com a postura do comerciante.

 8. Conclusão: o coleiro, o menino e a esperança  

No desfecho da crônica, o narrador imagina um cenário em que o menino, o burrinho e o coleiro entram no Céu, enquanto o comerciante é condenado ao inferno. Essa visão não é apenas uma crítica à exploração, mas também uma reafirmação da dignidade inerente ao menino e ao coleiro.  

Rubem Braga, com sua prosa lírica e reflexiva, transforma uma cena banal em uma análise profunda da condição humana. “Conversa de compra de passarinho” é uma denúncia da exploração, uma celebração da liberdade e uma lembrança de que, mesmo nas situações mais prosaicas, há espaço para poesia e reflexão. Em última análise, a crônica nos desafia a reconsiderar nossas próprias relações com o outro — seja ele humano ou não — e a buscar formas mais justas e compassivas de viver no mundo.

A crônica:

Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro: “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:

— Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.

Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:

— Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.

O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:

— Quanto é o coleiro?

— Ah, esse não tenho para venda, não…

Sei que o velho está mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.

— Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?

Fico calado algum tempo. Ele insiste: “O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.

— Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.

Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:

— Passarinho dá muito trabalho…

O velho atende outro freguês, lentamente.

— O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.

Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “Quinhentos cruzeiros?”

— Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.

Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “— Não tenho tempo para pegar passarinho.”

Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?

— No Rio eu compro um papa-capim mais barato…

— Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.

— Mas quinhentos cruzeiros?

— Quanto é que o senhor oferece?

Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “— Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”

O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”

Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.

— O senhor não leva o coleiro?

Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu — trotando, assobiando e cantando de pura alegria.


Nota:

A crônica "Conversa de compra de passarinho" teve sua primeira publicação na revista Manchete em 19 de setembro de 1959. Mais tarde, foi incluída em três coletâneas do grande mestre da crônica, considerado o maior expoente desse gênero literário — a edição mais recente é "200 crônicas escolhidas: as melhores de Rubem Braga" (Editora Record, 1977).

Sobre o autor:

Rubem Braga (1913-1990) é amplamente reconhecido como um dos maiores cronistas do Brasil. Nascido em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, no dia 12 de janeiro de 1913, ele era o caçula de uma família de oito filhos. Desde jovem, revelou uma vocação para a escrita, mostrando sensibilidade e perspicácia que marcariam toda a sua carreira literária.  

Braga iniciou sua trajetória jornalística ainda adolescente, escrevendo para o jornal Correio do Sul, da cidade natal. Posteriormente, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Faculdade de Direito, mas seu destino não estava nas leis: foi no jornalismo e na literatura que encontrou sua verdadeira paixão.  

Sua estreia literária aconteceu em 1936, com o livro O Conde e o Passarinho, uma coletânea de crônicas que já mostrava a capacidade única de Braga em transformar o cotidiano em arte literária. A obra foi bem recebida pela crítica e solidificou sua reputação como cronista, um gênero que ele ajudou a consolidar no Brasil.  

Embora tenha atuado como repórter e editor em diversos jornais e revistas pelo país, foi na crônica que Rubem Braga encontrou sua voz mais autêntica. Suas crônicas exploravam temas variados, desde cenas do cotidiano urbano até reflexões profundas sobre a vida, o amor, a natureza e as relações humanas. Ele tinha uma habilidade rara de captar a beleza em momentos simples e transformá-los em narrativas universais, impregnadas de lirismo e melancolia.  

Rubem Braga também teve uma carreira marcada pela política e pela cobertura de eventos históricos. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, trabalhou como correspondente de guerra. Mais tarde, cobriu a Segunda Guerra Mundial como enviado especial no front da Itália, experiência que influenciou algumas de suas crônicas mais sombrias e reflexivas.  

Apesar de seu sucesso literário, Braga era conhecido por seu temperamento reservado. Morou em diversas cidades, mas fixou-se no Rio de Janeiro no bairro de Ipanema, e seu apartamento tornou-se um símbolo de sua ligação com a natureza e a introspecção.  

Publicou dezenas de livros ao longo da vida, entre eles: O Morro do Isolamento (1944), 50 Crônicas Escolhidas (1951), A Cidade e a Roça (1957), Ai de Ti, Copacabana (1960), O Morro do Isolamento (1961), Crônicas de Guerra - Com a FEB na Itália (1964), As Boas Coisas da Vida (1988), O Verão e as Mulheres (1990), além de antologias e coletâneas que consolidaram sua importância na literatura brasileira. Sua escrita influenciou gerações de cronistas e escritores.

Rubem Braga atuou como embaixador do Brasil no Marrocos entre os anos de 1960 e 1963. Além disso, fez parte da equipe de jornalismo da TV Globo de 1975 a 1990. Reconhecido como o maior cronista brasileiro por diversos estudiosos, Braga também explorou a poesia em sua trajetória. Seus poemas estão associados à segunda geração do modernismo.

Rubem Braga faleceu em 19 de dezembro de 1990, no Rio de Janeiro, deixando um legado inestimável. Suas crônicas continuam a ser lidas e admiradas, confirmando seu papel como um observador sensível e crítico da alma brasileira.


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