O Relato da CIA e a Política de Execuções na Ditadura Militar Brasileira


A revelação do memorando da CIA (Central Intelligence Agency), datado de abril de 1974, teve implicações significativas para a compreensão do período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). O documento, que permaneceu secreto por décadas, fornece uma visão sem precedentes sobre as decisões tomadas nos bastidores do regime, particularmente no que diz respeito à política de repressão e execuções sumárias de opositores políticos. A reunião entre o presidente Ernesto Geisel e seus principais assessores militares deixou claro que a eliminação física de subversivos não era apenas uma prática de órgãos de segurança isolados, mas sim uma política de Estado, decidida nos mais altos escalões do poder.  

O Contexto da Ditadura e o Governo Médici (1969-1974)  

Para entender a importância desse memorando, é necessário voltar ao período do governo do General Emílio Garrastazu Médici, que antecedeu Geisel na presidência. Médici comandou o Brasil durante os anos mais duros da repressão, quando o aparato de segurança do regime aperfeiçoou seus métodos de perseguição, tortura e eliminação de dissidentes.  

Foi nesse período que o Centro de Informações do Exército (CIE), comandado pelo General Milton Tavares de Souza, consolidou-se como uma das principais instituições repressivas do regime. Segundo o relato da CIA, durante o governo Médici, pelo menos 104 pessoas foram executadas pelo CIE. Essas execuções eram justificadas pelo combate à chamada "subversão comunista", uma paranoia alimentada pelos militares e amplificada pelo contexto da Guerra Fria.  

A política de repressão se intensificou à medida que grupos de resistência armada, como a Ação Libertadora Nacional (ALN) e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), passaram a realizar ações de guerrilha urbana contra o regime. A resposta do governo foi brutal: prisões arbitrárias, tortura sistemática e desaparecimentos forçados se tornaram práticas comuns.  

A Transição para o Governo Geisel e a Reunião de Março de 1974  

Quando Ernesto Geisel assumiu a presidência em março de 1974, esperava-se uma transição para uma política de "distensão lenta, gradual e segura", como ele próprio definiu posteriormente. No entanto, o relato da CIA deixa claro que a cúpula do regime não pretendia abrir mão do recurso extremo da execução sumária.  

Na reunião de 30 de março de 1974, o General Milton Tavares de Souza, que estava deixando o comando do CIE, fez um balanço da política de repressão adotada nos anos anteriores e defendeu sua continuidade. Seu sucessor, o General Confúcio Danton de Paula Avelino, e o então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), General João Baptista Figueiredo, concordaram que a execução de subversivos deveria seguir como parte do combate à oposição ao regime.  

O memorando da CIA destaca que Geisel, ao ouvir os relatos, não tomou uma decisão imediata. Ele demonstrou relutância e pediu um tempo para refletir. No dia seguinte, porém, ele deu luz verde à continuidade da política, impondo duas condições:  

1. Apenas subversivos perigosos deveriam ser executados, ou seja, a política de eliminação não deveria ser usada indiscriminadamente.  

2. Cada execução deveria ser aprovada previamente pelo Palácio do Planalto, representado por João Figueiredo.  

Essa decisão coloca Geisel diretamente no centro da política de repressão. Se antes havia dúvidas sobre o envolvimento da alta cúpula do regime nos assassinatos, o documento da CIA demonstra que a política de execuções sumárias não apenas tinha aval do presidente, mas era regulada por ele.  

Henry Kissinger e a Relação dos EUA com a Ditadura Brasileira 

O documento da CIA foi endereçado ao então Secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, um dos principais articuladores da política externa norte-americana durante a Guerra Fria. Kissinger tinha uma visão pragmática sobre os regimes militares da América Latina e via o Brasil como um aliado estratégico no combate ao comunismo.  

Nos anos 1970, os Estados Unidos estavam envolvidos na Operação Condor, uma rede de cooperação entre as ditaduras militares da América do Sul para perseguir e eliminar opositores políticos dentro e fora de seus territórios. O Brasil, sob o governo Geisel, teve um papel ativo nessa operação, compartilhando informações e colaborando na repressão a exilados políticos.  

A proximidade entre Geisel e Kissinger era parte de uma política mais ampla de alinhamento entre os Estados Unidos e o regime militar brasileiro. Mesmo com a retórica de "distensão", Geisel manteve o aparato repressivo em funcionamento, garantindo que a repressão continuasse dentro dos parâmetros estabelecidos por ele e por Figueiredo.  

A Continuidade da Repressão Durante o Governo Geisel (1974-1979)  

Embora Geisel tenha sido responsável por iniciar a abertura política que culminaria no fim da ditadura em 1985, seu governo não significou uma interrupção da repressão estatal. Pelo contrário, sua política foi de controle mais centralizado da repressão, reduzindo a autonomia dos órgãos de segurança, mas sem acabar com a violência política.  

Um exemplo disso foi o assassinato de Vladimir Herzog, jornalista da TV Cultura, morto sob tortura no DOI-Codi de São Paulo em 1975. A repercussão do caso gerou uma crise política e pressões internacionais, forçando Geisel a demitir o comandante do II Exército, General Ednardo D’Ávila Mello, e impor limites à atuação dos setores mais radicais do regime.  

Ainda assim, a política de repressão não foi desmontada. Durante seu governo, a censura à imprensa e a perseguição a opositores continuaram, e a tortura permaneceu como um instrumento de controle político.  

A Relevância do Documento da CIA e Suas Implicações 

A divulgação do memorando da CIA em 2018 foi um marco para os estudos sobre a ditadura militar brasileira. Até então, muitos defensores do regime argumentavam que Geisel foi um "moderado" que tentou conter os excessos da repressão. No entanto, o documento demonstra que, longe de ser um opositor da violência política, Geisel apenas reformulou a forma como a repressão era conduzida, garantindo que os assassinatos fossem mais seletivos e aprovados pelo governo central.  

Essa revelação também tem impacto nas discussões sobre justiça de transição no Brasil. Diferentemente de países como Argentina e Chile, onde ex-líderes militares foram processados e condenados por crimes contra a humanidade, no Brasil, a Lei da Anistia de 1979 garantiu impunidade aos responsáveis pela repressão. Mesmo com evidências como o relatório da CIA, nenhum ex-presidente ou oficial de alta patente foi responsabilizado pelos crimes cometidos durante a ditadura.  

O documento também reforça a necessidade de revisão da narrativa oficial sobre o regime militar. A versão de que Geisel foi um reformista que buscou uma transição pacífica para a democracia precisa ser confrontada com os fatos. Sua decisão de manter a política de execuções demonstra que a ditadura não foi apenas um regime autoritário, mas um Estado que institucionalizou a tortura e o assassinato de opositores como ferramenta de controle político.  


   Presidentes do período da ditadura  militar (1964-1985)


Conclusão  

O relato da CIA sobre a reunião de março de 1974 entre Ernesto Geisel e seus assessores militares é uma das evidências mais contundentes do envolvimento da cúpula do regime na política de execuções sumárias. Longe de ser uma iniciativa isolada de órgãos de segurança, a repressão foi planejada, controlada e autorizada nos mais altos escalões do governo.  

A revelação desse documento reforça a necessidade de uma revisão histórica mais profunda sobre a ditadura militar no Brasil. Ele também reabre o debate sobre responsabilização dos agentes do regime, que, até hoje, permanecem impunes.  

Mais do que um registro do passado, a discussão sobre esse documento tem implicações diretas para o presente. O Brasil ainda convive com os legados da ditadura, seja na cultura de impunidade, na violência policial ou na resistência de setores políticos em reconhecer os crimes do regime.  

A história da ditadura não deve ser esquecida. A memória, a verdade e a justiça são fundamentais para garantir que o país não repita os erros do passado e avance na construção de uma democracia verdadeiramente comprometida com os direitos humanos.


● A seguir, uma livre tradução de um dos documentos disponibilizados pelo Officie the Historian do governo dos Estados Unidos da América: 

Relações Exteriores dos Estados Unidos, 1969–1976, Volume E–11, Parte 2, Documentos sobre a América do Sul, 1973–1976


99. Memorando do Diretor de Inteligência Central Colby ao Secretário de Estado Kissinger 1

Washington , 11 de abril de 1974 .

ASSUNTO

Decisão do Presidente do Brasil Ernesto Geisel de Continuar a Execução Sumária de Subversivos Perigosos Sob Certas Condições

1. [ 1 parágrafo (7 linhas) não desclassificado ]


2. Em 30 de março de 1974, o presidente brasileiro Ernesto Geisel se encontrou com o general Milton Tavares de Souza (chamado general Milton) e o general Confucio Danton de Paula Avelino, respectivamente os chefes de saída e de entrada do Centro de Inteligência do Exército (CIE). Também estava presente o general João Baptista Figueiredo , chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI) brasileiro.


3. O General Milton, que fez a maior parte da conversa, descreveu o trabalho da CIE contra o alvo subversivo interno durante a administração do ex-presidente Emilio Garrastazu Médici . Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e terrorista, e disse que métodos extralegais devem continuar a ser empregados contra subversivos perigosos. A esse respeito, o General Milton disse que cerca de 104 pessoas nessa categoria foram sumariamente executadas pela CIE durante o último ano ou mais. Figueiredo apoiou essa política e pediu sua continuidade.


4. O Presidente, que comentou a gravidade e os aspectos potencialmente prejudiciais desta política, disse que queria refletir sobre o assunto durante o fim de semana antes de chegar a qualquer decisão sobre

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se deveria continuar. Em 1º de abril, o presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para garantir que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE apreender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe do CIE consultará o general Figueiredo , cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada. O presidente e o general Figueiredo também concordaram que o CIE deve dedicar quase todo o seu esforço à subversão interna, e que o esforço geral do CIE deve ser coordenado pelo general Figueiredo .

5. [ 1 parágrafo (12½ linhas) não desclassificado ]


6. Uma cópia deste memorando está sendo disponibilizada ao Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos. [ 1½ linhas não desclassificadas ] Nenhuma outra distribuição está sendo feita.


W.E. Colby


Resumo: Colby relatou que o presidente Geisel planejava continuar a política de Médici de usar meios legais extras contra subversivos, mas limitaria as execuções aos subversivos e terroristas mais perigosos.


Fonte: Agência Central de Inteligência, Gabinete do Diretor de Inteligência Central, Trabalho 80M01048A: Arquivos de Assunto, Caixa 1, Pasta 29: B–10: Brasil. Segredo; [ restrição de manuseio não desclassificada ]. De acordo com uma anotação carimbada, David H. Blee assinou por Colby . Redigido por Phillips , [ nomes não desclassificados ] em 9 de abril. A linha para a concordância do Diretor Adjunto de Operações está em branco.

Nota: Este e outros documentos estão disponíveis para livre aceso em: 

https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99

● Todos os documentos foram descobertos pelo pesquisador Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).


Indicação de leituras:

● 1964: História do Regime Militar Brasileiro por Marcos Napolitano 

● Além do Golpe: Versões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar por Carlos Fico 

●   Coleção Ditadura - Volumes I, II, III, IV e V por Elio Gaspari

Veja mais em:

https://youtu.be/P716HiXDRCU?si=zcK_UpFXILqvQbQf



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