A violência simbólica e do corpo: O vergalho e a escravidão enraizada; uma análise do capítulo 68 de "Memórias Póstumas de Brás Cubas"
O capítulo 68 de Memórias Póstumas de Brás Cubas, intitulado "O Vergalho", é uma das passagens mais densas e impactantes da obra de Machado de Assis, sintetizando em poucas linhas a brutalidade, a perversão e a permanência estrutural da escravidão na sociedade brasileira do século XIX. Publicado em 1881, o romance é uma crítica mordaz e irônica às instituições sociais, políticas e morais do Brasil imperial, e, nesse capítulo, desnuda de maneira cortante o ciclo de violência e dominação perpetuado mesmo após a conquista da alforria. A cena do ex-escravo Prudêncio açoitando outro negro sintetiza o caráter sistêmico e estrutural da escravidão no Brasil: um sistema que aprisiona inclusive os que dele se libertam formalmente.
Neste ensaio, propõe-se uma leitura crítica do episódio, articulando elementos da teoria da longa duração de Fernand Braudel, observações da historiadora Leila Algranti e a própria ironia machadiana para pensar a escravidão não como uma instituição extinta no tempo, mas como uma herança estruturante que conforma a mentalidade, as relações sociais e os modos de produção do país até os dias atuais.
1. A cena do Valongo: o espetáculo da violência incorporada
A cena se passa no Valongo, antigo mercado de escravos do Rio de Janeiro, local historicamente marcado pelo sofrimento e desumanização. É nesse espaço que Brás Cubas presencia um homem negro açoitando outro, em praça pública, enquanto este último, submisso e subjugado, implora por clemência. A violência do vergalho, símbolo do domínio escravista, reaparece agora nas mãos de um alforriado. É o passado que insiste em se repetir, não como farsa, mas como tragédia perene.
A ironia machadiana se revela quando Brás reconhece o agressor: é Prudêncio, antigo escravo de sua família, aquele sobre quem o próprio narrador exercia sua tirania infantil. Brás montava-o como cavalo, colocava-lhe freios, batia, e Prudêncio apenas gemia. Agora livre, ele reproduz os gestos de opressão contra outro semelhante. Em vez de romper com a lógica escravista, Prudêncio a encarna, como se apenas trocasse de papel dentro de um mesmo teatro de horrores.
2. A escravidão como sistema: violência estruturante da sociedade brasileira
Segundo a historiadora Leila Algranti, na sociedade colonial brasileira os homens brancos eram minoria, vivendo da exploração da população de cor — fosse esta escrava ou liberta. O sistema escravista brasileiro não se limitava à figura do senhor e do escravo, mas contaminava todas as relações sociais. Mesmo os homens livres — e aqui podemos incluir Prudêncio — estavam presos à lógica de um mundo construído sobre a dominação racial e a exploração do trabalho forçado. De acordo com a historiadora:
De fato, numa, sociedade como a colonial brasileira, onde os homens brancos constituíram a minoria que vivia da exploração da população de cor (escrava ou liberta), as relações sócio-raciais traziam em si um desequilfbrio imanente e um esforço constante de catalisação de energias a fim de superar essa diferença, numérica, e preservar o sistema sob o qual se apoiava a exploração: o sistema colonial mercantilista português, cujos sustentáculos se apresentavam na forma da produção para o mercado externo, grandes propriedades monocultoras e o trabaIho escravo. [...] A sociedade carioca, por sua vez, não pode ser compreendida desvinculada da sociedade colonial, da qual é parte integrante. Nela, como no resto da sociedade brasileira, a escravidão imprimiu sua marca. E é a partir das relações que se estabelecem entre senhores e escravos que gira a producão e que se articulam os demais grupos sociais. A escravidão no Rio e no resto do pais lançou de forma definitiva suas raizes profundas, contaminando toda a vida brasileira mesmo após três séculos de dominação. (ALGRANTI, 1988, p.40-41)
Machado capta com lucidez essa perversidade estrutural. O gesto de Prudêncio não é apenas individual: é a expressão de um sistema que imprime a seus sujeitos a internalização da opressão. Ele não reproduz a violência apenas por perversidade, mas porque foi formado por ela, porque é o que o mundo lhe ensinou como possibilidade de poder e autonomia.
Nesse sentido, a obra de Machado vai ao encontro da análise de Algranti, que observa a marca profunda da escravidão na vida social brasileira. A compra de um escravo por Prudêncio, e sua punição pública, expressam a assimilação de um modelo perverso como forma de existência. É o que se pode chamar de escravidão internalizada: não bastava ser livre no papel; a liberdade real estava comprometida pelo modelo social dominante.
3. A longa duração da escravidão: Braudel e a permanência estrutural
Para o historiador Fernand Braudel, o tempo da história pode ser lido em diferentes camadas. Há o tempo curto dos acontecimentos, o tempo médio das conjunturas e o tempo longo das estruturas. A escravidão brasileira, sob essa ótica, deve ser compreendida não apenas como um evento histórico encerrado em 1888 com a assinatura da Lei Áurea, mas como uma estrutura de longa duração que moldou a formação do Brasil.
O capítulo 68 de Machado é um perfeito retrato dessa longa duração. Mesmo após a alforria, mesmo diante da liberdade formal, os mecanismos de dominação permanecem. Prudêncio, ao exercer a violência sobre outro negro, revela que a estrutura mental e social da escravidão não se desfez. Ela apenas se reacomodou.
E o narrador, Brás Cubas, é a expressão da elite que observa com certo distanciamento e ironia a cena, sem nunca contestar verdadeiramente a ordem das coisas. Seu comentário final, de que o episódio possuía um “miolo gaiato, fino, e até profundo”, revela o cinismo de uma classe que naturalizou a violência, mascarando-a com elegância literária.
4. A perversidade do ciclo: do chicote recebido ao chicoteado
O gesto de Prudêncio sintetiza o ciclo da escravidão. Ele foi açoitado, submisso, animalizado. Agora, quando tem alguma margem de poder, reproduz a mesma lógica. Mas por que ele não rompe com ela? Por que não se solidariza com o outro negro?
Aqui está um dos pontos mais profundos do pensamento machadiano: o sistema escravista não apenas impunha o sofrimento físico, mas moldava subjetividades. A escravidão, para além da coerção, produzia sujeitos colonizados mentalmente, que aprendiam a associar poder à violência, humanidade à branquitude e liberdade ao domínio do outro. O gesto de Prudêncio, portanto, é menos uma escolha e mais uma forma de sobrevivência dentro de uma ordem que não oferecia alternativas reais.
Esse processo lembra os estudos pós-coloniais sobre a “colonização do imaginário”, em que o oprimido internaliza os valores do opressor. A “compra” de um escravo, por parte de Prudêncio, pode ser lida também como um desejo de ascensão social dentro dos moldes da sociedade escravista: ser senhor, ainda que pequeno, é melhor que ser subalterno. Assim, a escravidão se reproduz mesmo sem necessidade de imposição externa, porque está entranhada nas mentalidades.
5. A prisão dos livres: todos cativos do sistema
Um dos aspectos mais notáveis da sociedade escravista brasileira — e que Machado evidencia com sutileza — é que mesmo os homens livres estão aprisionados pelo sistema. Brás Cubas é senhor, é branco, é da elite, mas também é prisioneiro de sua própria condição. Ele não consegue imaginar um mundo diferente, não enxerga a escravidão como problema ético, e interpreta a brutalidade como espetáculo intelectual.
Essa cegueira moral é um tipo de prisão. Como observa Algranti, toda a sociedade estava organizada em torno da escravidão: a produção econômica, as relações sociais, os afetos, os valores. E essa estrutura aprisionava até os que pareciam estar no topo.
A fala de Brás Cubas — “Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu fraco” — diante de uma cena de violência e humilhação, é reveladora. Ele escolhe não se comprometer, não se indignar. E sua indiferença é, talvez, o retrato mais cruel da elite brasileira, que assistiu à escravidão, à abolição e à marginalização dos libertos sem nunca abandonar sua confortável posição de mando.
6. Permanências contemporâneas: o vergalho hoje
A análise do capítulo 68 não pode se encerrar no século XIX. A herança da escravidão se projeta até o presente. A teoria da longa duração de Braudel nos obriga a pensar como as estruturas escravistas persistem sob novas formas: o racismo estrutural, a desigualdade econômica, a violência policial contra a população negra, a exclusão social.
O gesto de Prudêncio, embora particular, é sintoma de uma sociedade que não resolveu seu passado. A liberdade formal dos ex-escravos não se traduziu em cidadania plena, e a ausência de políticas reparatórias aprofundou a exclusão. A escravidão não foi apenas uma mancha na história; ela é o tecido da história brasileira.
Machado de Assis, com sua ironia sutil e devastadora, percebeu isso antes de muitos historiadores. Sua obra, especialmente *Memórias Póstumas de Brás Cubas*, é uma denúncia do Brasil arcaico que, sob a aparência de civilização, escondia (e ainda esconde) práticas bárbaras.
Conclusão: o vergalho como metáfora nacional
O capítulo 68 de Memórias Póstumas de Brás Cubas é mais do que um retrato da violência escravista: é uma metáfora da sociedade brasileira, marcada pela reprodução do poder, pela naturalização da opressão e pela incapacidade de ruptura com um passado que insiste em se fazer presente.
A cena do vergalho não é apenas um episódio isolado, mas um emblema de uma estrutura que atravessa séculos. Em diálogo com Leila Algranti e Fernand Braudel, vemos que a escravidão não terminou com a alforria, mas se reconfigurou nas relações sociais, nos imaginários coletivos e nas práticas cotidianas.
Na sociedade escravista brasileira a violência era simbólica e do corpo. De alguma forma não havia pessoas livres integralmente, todos eram cativos do sistema escravista.
Machado de Assis, com sua genialidade contida, não grita. Apenas mostra. E ao mostrar, nos obriga a pensar: até quando o vergalho continuará a ser passado de mão em mão? Quando será possível quebrar o ciclo? Essa é a pergunta que o Brasil ainda precisa responder.
CAPÍTULOL68 / O VERGALHO
Tais eram as reflexões que eu vinha fazendo, por aquele Valongo fora, logo depois de ver e ajustar a casa. Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara
alguns anos antes. Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele preto era escravo dele.
— É, sim, nhonhô.
— Fez-te alguma coisa?
— É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda, enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda beber.
— Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
— Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa,
bêbado!
Saí do grupo, que me olhava espantado e cochichava as suas conjeturas. Segui caminho, a desfiar uma infinidade de reflexões, que sinto haver inteiramente perdido; aliás, seria matéria para um bom capítulo, e talvez alegre. Eu gosto dos capítulos alegres; é o meu
fraco. Exteriormente, era torvo o episódio do Valongo; mas só exteriormente. Logo que meti mais dentro a faca do raciocínio achei-lhe um miolo gaiato, fino, e até profundo. Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, - transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca, e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria.
Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!
Indicação de leituras:
● Memórias Póstumas de Brás Cubas por Machado de Assis
● O Feitor Ausente: Estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro 1808-1822 por Leila Algranti
● Escritos sobre a História por Fernand Braudel
Veja mais em:
https://youtu.be/bJ3k02puBfA?si=6x-rdvgUMl97o_Pv
Assista ao filme Memórias Póstumas de Brás Cubas (20001) clicando no link:
https://youtu.be/dDsA2pAiELw?si=9d0mKYjAaL_QaqJM
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