A Armadilha de Tucídides: Entendendo o Risco de Conflito entre Potências Emergentes e Estabelecidas


Introdução 

A história das relações internacionais é marcada por momentos em que potências emergentes desafiam a ordem estabelecida, gerando tensões que podem levar a conflitos armados. Um dos conceitos mais relevantes para entender essa dinâmica é a Armadilha de Tucídides, termo cunhado pelo cientista político Graham Allison para descrever a tendência de uma guerra ocorrer quando uma potência em ascensão ameaça desbancar uma potência dominante.  

Inspirado na análise da Guerra do Peloponeso (431–404 a.C.), relatada pelo historiador grego Tucídides, esse conceito sugere que o medo e a insegurança gerados pela mudança no equilíbrio de poder podem precipitar um conflito. Nos dias atuais, a aplicação mais discutida da Armadilha de Tucídides é a rivalidade entre China e Estados Unidos, onde o crescimento econômico e militar chinês desafia a hegemonia americana.  

Este texto explora a fundo a origem histórica da Armadilha de Tucídides, sua aplicação contemporânea, casos históricos que ilustram o fenômeno e as possíveis estratégias para evitá-lo.  
  

1. Origens Históricas: A Guerra do Peloponeso e Tucídides  

1.1 O Contexto da Guerra do Peloponeso  
A Guerra do Peloponeso foi um conflito entre duas cidades-estado gregas: Atenas (uma potência marítima em ascensão) e Esparta (a potência terrestre dominante). Tucídides, em sua obra História da Guerra do Peloponeso, argumentou que a causa fundamental da guerra foi "o crescimento do poder de Atenas e o medo que isso incutiu em Esparta".  

Atenas, após liderar a resistência grega contra os persas, formou a Liga de Delos, consolidando sua influência sobre outras cidades-estado. Esparta, por sua vez, liderava a Liga do Peloponeso e via o expansionismo ateniense como uma ameaça direta à sua segurança.  

1.2 A Análise de Tucídides

Tucídides foi um dos primeiros pensadores a destacar que as guerras não ocorrem apenas por razões materiais, mas também por fatores psicológicos, como medo, honra e interesse. Sua análise sugere que:  
- Potências emergentes (como Atenas) buscam maior influência.  
- Potências estabelecidas (como Esparta) temem perder seu status.  
- A incapacidade de gerir essa transição de poder pode levar a um conflito.  

Essa dinâmica ficou conhecida como a Armadilha de Tucídides, pois ilustra como a competição entre potências pode se tornar uma profecia autorrealizável. De acordo com Tucídides:

O acontecimento mais importante dos tempos passados foi a guerra com os persas, e todavia ela foi prontamente decidida em dois combates navais: e duas batalhas terrestres. Mas a guerra do Peloponeso estendeu-se por longo tempo, e no seu curso a Hélade sofreu desastres como jamais houvera num lapso de tempo comparável. Nunca tantas cidades foram capturadas e devastadas, algumas pelos bárbaros:" outras pelos próprios helenos combatendo uns contra os outros, enquanto algumas, após a captura, sofreram uma mudança total de habitantes. Nunca tanta gente foi exilada ou massacrada, quer no curso da própria guerra, quer em conseqüência de dissensões civis. Assim, as estórias dos tempos anteriores, transmitidas por tradição oral, mas muito raramente confirmadas pelos fatos, deixaram de ser incríveis; as referentes a terremotos, por exemplo, pois eles ocorreram em extensas regiões do mundo e foram também de grande violência; eclipses do sol, que ocorreram a intervalos mais freqüentes do que os mencionados para todo o tempo passado; grandes secas, também, em algumas regiões, 
com a seqüela da fome; finalmente - o desastre que causou mais infortúnios 
à Hélade e destruiu uma considerável parcela de sua população - a peste epidêmica. Todos esses desastres, na verdade, ocorreram simultaneamente com a guerra, e ela começou quando os atenienses e peloponésios rompe-
ram a trégua de trinta anos:", concluída entre eles após a captura da Eubéia. 
As razões pelas quais eles a romperam e os fundamentos de sua disputa eu 
exporei primeiro, para que ninguém jamais tenha de indagar como os helenos 
chegaram a envolver-se em uma guerra tão grande. A explicação mais verídica, apesar de menos freqüentemente alegada, é, em minha opinião, que os atenienses estavam tornando-se muito poderosos, e isto inquietava os 
lacedemônios, compelindo-os a recorrerem à guerra. [...]                  

No trecho citado de "História da Guerra do Peloponeso", Tucídides está refletindo sobre a dimensão e a gravidade da Guerra do Peloponeso em comparação com os conflitos anteriores da história da Grécia, especialmente as Guerras Médicas (também conhecidas como guerras contra os persas).
A que Tucídides se refere:

1. "O acontecimento mais importante dos tempos passados foi a guerra com os persas, e todavia ela foi prontamente decidida em dois combates navais e duas batalhas terrestres":

Aqui, Tucídides se refere diretamente às Guerras Médicas (492-449 a.C.), nas quais os gregos enfrentaram o poderoso Império Persa. Os dois combates navais mais importantes foram:

Batalha de Salamina (480 a.C.)
Batalha de Mícale (479 a.C.)

As duas batalhas terrestres foram:

Batalha de Maratona (490 a.C.)
Batalha de Plateias (479 a.C.)

Tucídides argumenta que, apesar de serem eventos grandiosos, essas guerras foram resolvidas em poucos grandes confrontos.

2. Comparação com a Guerra do Peloponeso:

Ele destaca que a Guerra do Peloponeso (431–404 a.C.) foi muito mais longa, devastadora e cheia de sofrimento para a Grécia (Hélade) como um todo. Também enumera uma série de desastres simultâneos que ocorreram durante a guerra:

Tomada e destruição de muitas cidade 

Guerras internas entre os próprios gregos (guerras civis)

Exílios em massa

Massacres

Terremotos e eclipses solares

Grandes secas e fome

E, sobretudo, a peste de Atenas, que matou um   grande número de cidadãos, inclusive o líder  Péricles.

3. A causa da guerra segundo Tucídides:
   
Embora os helenos apresentassem várias justificativas políticas, diplomáticas ou comerciais, Tucídides afirma que a causa real, ainda que raramente confessada, foi o crescimento do poder de Atenas, que assustou Esparta (Lacedemônia), levando os espartanos a considerar a guerra inevitável.

Tucídides está dizendo que, embora as Guerras Médicas tenham sido importantes, nenhum conflito anterior se compara em duração, sofrimento e devastação à Guerra do Peloponeso. E a verdadeira causa da guerra, segundo ele, foi o medo de Esparta diante do poder crescente de Atenas.

2. A Armadilha de Tucídides na Era Moderna  

2.1 Definição e Mecanismos 
Graham Allison, em seu livro Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap? (2017), popularizou o termo ao aplicar a lógica de Tucídides às relações EUA-China. Segundo ele:  
>"Quando uma potência em ascensão ameaça deslocar uma potência dominante, as apostas mais comuns são a guerra."  

Allison estudou 16 casos históricos nos últimos 500 anos em que uma potência emergente desafiou uma potência estabelecida. Em 12 desses casos (75%), o resultado foi uma guerra em grande escala. Ainda segundo Graham Allison no livro Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap? :

A História da Guerra do Peloponeso de Tucídides é o relato definitivo deste conflito e uma das grandes obras da civilização ocidental. Até hoje, permanece um texto seminal, estudado e debatido não apenas por historiadores e classicistas, mas também por estrategistas militares e civis em universidades e escolas de guerra ao redor do mundo.
Como Tucídides explica na introdução de sua obra, o propósito de sua crônica é ajudar futuros estadistas, soldados e cidadãos a compreender a guerra, para que possam evitar os erros cometidos por seus predecessores: “Se minha história for considerada útil por aqueles que desejam um conhecimento exato do passado como auxílio para compreender o futuro — que, no curso dos assuntos humanos, deve se assemelhar a ele, se não o refletir — ficarei satisfeito.”

Como o "historiador aplicado" original, ele
compartilhava a visão posteriormente capturada pela frase de Winston Churchill: "Quanto mais você consegue
olhar para trás, mais longe consegue olhar para a frente".

Com Tucídides, meus colegas do segundo ano e eu aprendemos sobre a longa paz que precedeu a grande guerra entre Atenas e Esparta. Lemos sobre o precioso experimento de Atenas com a democracia e seu surto sem precedentes de
conquistas criativas em todos os campos. Esses gregos antigos essencialmente inventaram
a filosofia, o drama, a arquitetura, a escultura, a história, a guerra naval e muito mais;
o que eles próprios não criaram, levaram a patamares nunca antes vistos na história humana. Sócrates, Platão, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Ictino (o arquiteto do Partenon), Demóstenes e Péricles permanecem gigantes no
avanço da civilização.

Tucídides escreveu sua história para que possamos entender como Estados tão notáveis, que conseguiram existir pacificamente por décadas, acabaram se envolvendo em uma guerra devastadora. Enquanto outros observadores enfatizaram causas próximas, Tucídides vai ao cerne da questão. “Quanto às razões pelas quais Esparta e Atenas romperam a trégua”, escreve ele, “proponho primeiro apresentar um relato das causas das queixas que tinham uma contra a outra e dos casos específicos em que seus interesses se chocaram”. Mas, ele alerta, “a verdadeira razão para a guerra provavelmente será obscurecida por tais argumentos”.

Por trás desses fatores contribuintes, encontra-se uma causa mais fundamental, e ele concentra seus holofotes nela. O que tornou a guerra “inevitável”, diz Tucídides,
“foi a ascensão de Atenas e o medo que isso incutiu em Esparta”.

Este é o fenômeno que chamei de Armadilha de Tucídides: o severo estresse estrutural causado quando uma potência em ascensão ameaça derrubar uma potência dominante. Em tais condições, não apenas eventos extraordinários e inesperados, mas até mesmo pontos críticos comuns de relações exteriores, podem desencadear conflitos em larga escala.
Como essa dinâmica levou Atenas e Esparta à guerra fica claro no relato de Tucídides. Tendo combinado armas em uma grande guerra para expulsar os persas, ele escreve, Atenas e Esparta se propuseram a administrar sua competição estratégica pacificamente. Resolveram com sucesso uma série de crises que ameaçavam desencadear uma guerra, incluindo a negociação de uma grandiosa Paz dos Trinta Anos.

Reconheceram que as diferenças marcantes entre as culturas, os sistemas políticos e os interesses dos dois estados tornavam a competição vigorosa inevitável. Mas também sabiam que a guerra poderia trazer desastre e estavam determinados a encontrar uma maneira de garantir seus interesses sem ela.
Como, então, essas duas grandes cidades-estados gregas sucumbiram a um conflito que teve consequências tão catastróficas para ambas? Cada uma das seiscentas páginas da História da Guerra do Peloponeso oferece detalhes convincentes sobre as reviravoltas ao longo do caminho dessa guerra fatal.
4 histórias sobre encontros diplomáticos entre os dois principais e estados gregos menores, como Melos, Mégara, Córcira e muitos outros, oferecem pistas instrutivas para a arte de governar. Mas o principal enredo de Tucídides é a força gravitacional que puxou Atenas e Esparta em direção à colisão: a ascensão implacável de Atenas e a crescente sensação de Esparta de que isso estava minando sua posição de predominância na Grécia. Seu tema principal, em outras palavras, é a Armadilha de Tucídides e a maneira como ela capturou as duas potências mais lendárias do mundo antigo, apesar de suas repetidas tentativas de evitá-la.

2.2 Aplicação ao Século XXI: EUA vs. China  

A ascensão da China como potência global é frequentemente comparada ao crescimento da Alemanha no século XIX (desafiando o Reino Unido) ou dos EUA no século XX (superando o Reino Unido sem guerra). 

Fatores que Alimentam a Armadilha:  

1. Crescimento Econômico Chinês 
   
- A China é a segunda maior economia do mundo e pode ultrapassar os EUA em PIB nominal até 2030.  
   - Seu projeto "Made in China 2025" busca dominar tecnologias estratégicas.  

2. Expansão Militar  
   
- A China moderniza suas forças armadas, desenvolvendo mísseis hipersônicos e expandindo sua marinha.  
   - Reivindicações no Mar do Sul da China desafiam a presença naval americana.  

3. Competição Tecnológica  
  
 - Disputa por 5G, inteligência artificial e semicondutores.  
   - Sanções dos EUA contra empresas como Huawei.  

4. Rivalidade Geopolítica  
   
- A China promove a Nova Rota da Seda, expandindo influência na Ásia, África e Europa.  
   - Os EUA respondem com alianças como o AUKUS (Austrália, Reino Unido, EUA) e o
Quad (EUA, Japão, Índia, Austrália).  

2.3 Medo e Percepções de Ameaça 

Assim como Esparta temia Atenas, os EUA veem a China como um desafio existencial à sua liderança global. A China, por sua vez, acredita que os EUA buscam conter seu desenvolvimento. Essa dinâmica de desconfiança mútua aumenta o risco de conflito.  

3. Casos Históricos da Armadilha de Tucídides  

Allison identificou 16 casos em que uma potência emergente desafiou uma estabelecida. Alguns exemplos:  

3.1 Casos que Levaram a Guerra 

1. Espanha vs. Portugal (século XVI) – Conflitos por colônias.  
2. França vs. Habsburgos (Guerra dos Trinta Anos, 1618–1648) – Disputa por hegemonia europeia.  
3. Alemanha vs. Reino Unido (Primeira Guerra Mundial, 1914–1918) – A ascensão alemã ameaçou o domínio britânico.  

3.2 Casos em que a Guerra Foi Evitada  

1. EUA vs. Reino Unido (século XIX-XX) – Transição pacífica de poder.  
2. URSS vs. EUA (Guerra Fria, 1947–1991) – Conflito indireto, mas sem guerra direta.  

Esses casos mostram que a guerra não é inevitável, mas requer gestão estratégica.  
 

4. Como Escapar da Armadilha de Tucídides?  

4.1 Diplomacia e Cooperação Econômica  

- Interdependência econômica (EUA e China são parceiros comerciais) pode reduzir incentivos para conflito.  
- Diálogos estratégicos, como cúpulas entre líderes, podem evitar mal-entendidos.  

4.2 Mecanismos de Controle de Crises 

- Linhas de comunicação direta (como o telefone vermelho EUA-URSS na Guerra Fria).  
- Acordos de prevenção de conflitos, como regras para evitar confrontos no Mar do Sul da China.  

4.3 Equilíbrio de Poder Multipolar  

- Um sistema com múltiplas potências (EUA, China, UE, Índia) pode reduzir a bipolaridade perigosa.  

4.4 Lições da História  

- Transições pacíficas (como EUA superando o Reino Unido) mostram que cooperação é possível.  
- Guerras evitadas (Guerra Fria) demonstram que contenção e diplomacia funcionam.  
  

5. Conclusão: A Armadilha de Tucídides é Inevitável?

A Armadilha de Tucídides não é uma lei da física, mas um alerta sobre os riscos de rivalidades mal administradas. Enquanto a história mostra que conflitos são comuns nesses cenários, também há exemplos de transições pacíficas.  

No caso de EUA e China, fatores como interdependência econômica, diplomacia e gestão de crises podem evitar uma guerra. No entanto, se o medo e a desconfiança prevalecerem, o risco de conflito permanece alto.  

A lição de Tucídides é clara: potências estabelecidas e emergentes devem buscar modos de coexistência, ou a história pode se repetir com consequências catastróficas.  
 


Indicação de leituras:

● Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?  por Graham Allison 

● TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso por Tucídides 

● Sobre a China por Henry Kissinger


Veja mais em:
 

https://youtu.be/tc9zq8kq9To?si=ZlqkaSnC5tO5shnw

https://youtu.be/eHShoVtGcbA?si=l189mI7j183bYb9L

https://youtu.be/vif1nedEs5k?si=2zTm-S1p-9_zeZ4Z



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