A Igreja Católica durante o regime de Vichy
19 de maio de 2025 por Sérgio Ricardo Coutinho
Em 1997, a Igreja Católica da França quebrou um silêncio de 55 anos sobre seu papel durante a ocupação nazista e o Regime de Vichy (1940-1944). Em Drancy, local do principal campo de deportação de judeus na França, Monsenhor Olivier de Barranger, bispo de Saint-Denis, leu a declaração oficial dos bispos franceses. Nela, reconheceram-se tanto o apoio do alto clero ao Regime de Vichy, marcado por indiferenças e conformismos, quanto os atos corajosos de resistência de bispos, padres e leigos que ajudaram judeus perseguidos.
A Igreja e o Regime de Vichy
Após a derrota para a Alemanha nazista em junho de 1940, a França foi dividida em duas principais zonas de ocupação: uma zona ocupada pelos alemães (que incluía a capital Paris e outras regiões do Norte) e uma zona não ocupada (englobando o Sul do país e com sede na cidade de Vichy). Essa zona não ocupada era governada por um governo francês liderado pelo marechal Philippe Pétain. Esse governo foi o que os historiadores chamam de um governo colaboracionista, porque colaborava ativamente com os nazistas.
Os católicos franceses, de modo geral, aderiram com confiança ao Marechal Pétain, visto como um salvador – uma figura recorrente na história nacional. Salvador em Verdun, na vitória de 1916, Pétain reassumiu naturalmente esse papel na derrota de 1940, oferecendo o serviço de sua pessoa à França.
Essa adesão pessoal, que os historiadores franceses chamam de maréchalisme, foi reforçada pelo fato de que muitos bispos, padres e notáveis leigos eram veteranos da Primeira Guerra Mundial, frequentemente próximos de Pétain, como o Cardeal Achille Liénart, bispo de Lille. Além disso, os bodes expiatórios da derrota eram também inimigos de longa data da Igreja, que se alegrava em vê-los publicamente censurados: o laicismo, a maçonaria e o comunismo.
A visão positiva sobre Pétain em 1940 uniu opiniões de católicos, que viam o armistício como essencial para evitar o colapso e reconstruir a França. Essa reconstrução deveria seguir uma direção conservadora. O lema que mais agradava aos setores desse catolicismo era “Trabalho, Família e Pátria”.
Apesar disso, desilusões, pequenas ou grandes, começaram a fissurar essa aliança, justificando a fórmula elaborada pela Assembleia dos Cardeais e Arcebispos em julho de 1941: “Queremos que, sem subserviência, seja praticado um lealismo sincero e completo em relação ao poder estabelecido”.
Por que essa mudança de atitude? A Igreja buscava se distanciar de medidas impopulares, como o retrocesso religioso nas escolas, divergências sobre a Carta do Trabalho (1941), a requisição de trabalhadores para a Alemanha (1942-1943) e o Estado miliciano (1944). Contudo, isso não significava resistência.
Pelo contrário, a contribuição católica à união em torno de Pétain, o “lealismo sincero e completo”, implicava uma reprovação firme dos “dissidentes”, tanto externos quanto internos, que dividiam e enfraqueciam a nação.
Philippe Pétain, marechal chefe de Estado francês durante os quatro anos do regime de Vichy, em encontro com Hitler. Foto: Bundesarchiv, Bild 183-H25217 / CC-BY-SA 3.0.
Foram nessas condições que os teólogos “não autorizados”, como Jacques Maritain e Emmanuel Mounier, que desenvolveram a ideia de Vichy como “príncipe escravo” do nazismo, foram repreendidos. Primeiro, porque arriscavam dividir os fiéis de seus pastores e do marechal, e, em segundo lugar, porque usurparam dos bispos um magistério que não lhes pertencia.
A questão judaica: entre silêncio e discrição
O catolicismo francês já não era, no final da década de 1930, a principal força motriz do antissemitismo, mesmo que algumas de suas manifestações poderiam ter sugerido isso no final do século XIX.
Em círculos intelectuais restritos, mas com alguma influência sobre membros da hierarquia, surgiram formas de hostilidade ao antissemitismo que evoluíram para um verdadeiro filossemitismo. No entanto, a opinião majoritária dos fiéis continuava influenciada por um antijudaísmo de longa data e pela crença na existência de uma “questão judaica” que deveria ser tratada de maneira legal, e não racial.
Como aquela questão não era um tema central para os católicos, talvez isso explique o silêncio completo do episcopado em relação ao primeiro estatuto dos judeus (1940) e a sua reação privada muito moderada ao segundo (1941).
Um instante de comoção surgiu, no entanto, quando o problema mudou de natureza. Sem que os responsáveis da Igreja tivessem plena consciência do destino dos judeus capturados durante o verão de 1942, sob pressão alemã e pela polícia francesa, muitos católicos compreenderam que um limite inaceitável havia sido ultrapassado. Daí surgiu o protesto público de seis bispos da Zona Livre (controlada por Vichy) e o protesto privado da Assembleia dos Cardeais e Arcebispos junto às autoridades.
Esses protestos foram, ao mesmo tempo, pouco e muito. Pouco, porque a maioria do episcopado permaneceu em silêncio. Muito, porque essas vozes isoladas causaram preocupação, a ponto de provocar um forte ressurgimento do anticlericalismo entre os colaboradores em Paris. Contudo, os prelados envolvidos apressaram-se em esclarecer às autoridades competentes que seu gesto não comprometia de forma alguma seu lealismo em relação ao Estado francês e seu chefe.
Apesar disso, houve uma ampla atividade de auxílio aos perseguidos, especialmente crianças, por diversas instituições católicas. Vários bispos fecharam os olhos para essas ações ilegais ou até as apoiaram com sua autoridade. Embora não tenha evitado a Shoah (Holocausto) no judaísmo francês, essas ações contribuíram parcialmente para a sobrevivência da comunidade judaica.
Resistência “patriótica de inspiração cristã” e inovações pastorais
Acusando os colaboracionistas e os “lealistas” de mancharem a “alma da pátria” com seus compromissos com os nazistas e com Vichy, jornais e intelectuais católicos, como Cahiers de Témoignage Chrétien e Emmanuel Mounier, promoveram a ideia de uma “frente de resistência espiritual”. Para eles, resistir era sim um “dever cristão” e a desobediência uma “objeção de consciência”.
Em 1943, a Associação Católica da Juventude Francesa (ACJF) aderiu à Resistência. Publicavam o jornal clandestino Jeunesse nouvelle para apoiar os jovens resistentes. A polícia alemã notou o grande número de resistentes ligados à JOC, com outros muito mais que militavam ativamente nas redes e no maquis. Conforme a formulação de Renée Bédarida, foi uma “Resistência patriótica de inspiração cristã” que atuou com armas nas mãos, tanto as reais como as “do Espírito”.
Com a implantação do Serviço do Trabalho Obrigatório (STO) as relações entre os leigos católicos e o episcopado ficaram muito degradas, especialmente pelo silêncio de muitos bispos. Paradoxalmente, o Cardeal Emmanuel Suhard de Paris, um dos mais “adaptados às realidades da ocupação”, deu um passo arriscado.
Jovens e trabalhadores franceses na Alemanha reclamavam, em cartas, a falta de padres para lhes acompanhar. Depois de várias tentativas frustradas de negociações com autoridades de Vichy e alemãs, o Cardeal resolveu enviar, clandestinamente, para as fábricas, 25 padres voluntários. Mas, foram descobertos.
Ernst Kalterbrunner, Chefe de Segurança do Reich, ordenou à Gestapo deter e expulsar padres e seminaristas franceses disfarçados de trabalhadores civis, dissolver os grupos da JOC e prender seus militantes mais ativos.
A convivência dos padres clandestinos com os prisioneiros (ateus, comunistas, protestantes, judeus…) aproximou-os de homens com os quais antes estavam distantes. Trabalhavam, viviam e compartilhavam refeições e sofrimentos juntos. Essa experiência foi muito bem analisada por Guillaume Zeller em O Pavilhão dos Padres do Campo de Concentração de Dachau.
Mas aqueles anos de ocupação também acabaram por permitir inovações nas práticas pastorais da Igreja francesa que teriam repercussões para além de seu território.
A Igreja Católica durante o regime de Vichy 3
Um pequeno manuscrito de 58 páginas, escrito pelos padres Henri Godin e Yves Daniel, intitulado: “Memória sobre a conquista cristã no meio proletário: a França, país de missão?” provocou um tremendo “terremoto” eclesial.
O proletariado urbano francês na época, entre oito ou nove milhões de pessoas, constituía uma classe social (um quarto da população francesa) que vivia e pensava fora da Igreja, totalmente descristianizado. Para isso, os dois autores pensavam em transformar as paróquias dos bairros operários em verdadeiras áreas missionárias.
O Cardeal Suhard, entusiasmou-se com a proposta e criou dois projetos pastorais de longo alcance: a Missão de França e a Missão de Paris. Esses movimentos refletiam sobre a missão da Igreja no novo mundo pós-Libertação, promovendo a atuação de padres em comunidades locais, fábricas e escritórios.
Um exemplo foi a experiência dos padres do Instituto dos Filhos da Caridade (IFC). A paróquia de Petit-Colombes, localizada no nordeste de Paris, atendia os bairros operários de Colombes e Nanterre, com práticas religiosas e assistencialistas tradicionais. Os Filhos da Caridade, porém, decidiram inovar, aceitando o desafio de Godin e Daniel de transformar a paróquia em uma comunidade missionária. Durante cinco anos, em meio à ocupação nazista, priorizaram um apostolado direto, reformando a liturgia, para promover maior participação dos fiéis, e descentralizaram as atividades paroquiais, aproximando-as da população local.
Esses mesmos Filhos da Caridade chegaram ao Brasil em 1961 para trabalhar com operários nas dioceses de Santo André (SP) e, a partir de 1966, na diocese de Santos (SP). Por isso, foram acompanhados pelos agentes da Ditadura Militar.
Dualidades
A atuação da Igreja nos “anos sombrios” de Vichy, ainda alvo hoje de revisões historiográficas, revela uma dualidade entre conformismo e resistência. Enquanto muitos apoiaram Pétain, parte dos católicos mobilizou-se para ajudar perseguidos e questionar o regime, evidenciando o “coração de um mundo sem coração”.
As tensões vividas nesse período não apenas influenciaram as práticas eclesiais na França pós-guerra, mas também serviram de base para adaptações e renovações pastorais em outros contextos, como no Brasil, onde o catolicismo assumiu um papel social e político mais engajado.
Documentos
La Déclaration de Repentance des Évêques de France, 30/09/1997.
Referências
● Bédarida, François; Bédarida, Renée. La Résistance spirituelle: 1941-1944. Les cahiers clandestins du Témoignage chrétien. Paris: Albin Michel, 2001, 412 pp.
●DUQUESNE, Jacques. Os católicos franceses e a resistência. Lisboa: Moraes Editores (Col. História de Hoje, nº. 12), 1968, 452 pp.
●ÉGLISE CATHOLIQUE EN FRANCE. La Déclaration de Repentance des Évêques de France. Disponível aqui: https://eglise.catholique.fr/wp-content/uploads/sites/2/2017/02/1997_Declaration-de-repentance-de-Drancy.pdf Acesso em: 17/01/2025.
●FRANCISCO. Carta do Papa Francisco sobre a Renovação do Estudo da História da Igreja. Disponível aqui: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2024/documents/20241121-lettera-storia-chiesa.html Acesso em: 17/01/2025.
●MOIGNE, Frédéric Le. Les évêques français de Verdun à Vatican II:Une génération en mal d’héroïsme. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2005, 376 pp. Disponível aqui: https://0-books-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pur/42078 Acesso em: 18/01/2025.
●SILVA, César Agenor Fernandes da; NETO, Giles Salas. Da Fábrica ao Sacrário: os padres operários, a Juventude Operária Católica (JOC) e a repressão da Ditadura Militar em Santos/SP (1967-1973). Revista Projeto História, São Paulo: PUC-SP, v. 77, mai.-ago., 2023, pp. 61-86.
●ZELLER, Guillaume. O Pavilhão dos Padres: Dachau (1938-1945). SP: Contexto, 2018, 240 pp.
Artigo publicado no site Café História:
● COUTINHO, Sérgio Ricardo. A Igreja Católica durante o Regime de Vichy (artigo) In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/igreja-catolica-regime-vichy/ ISSN: 2674-5917. Publicado em: 19 maio de 2025.
Nota:
● Sérgio Ricardo Coutinho
Doutor em História pela UFG, professor de História do Brasil Contemporâneo no Departamento de História da UPIS – Faculdades Integradas (DF) e membro do Centro de Estudos em História da Igreja na América Latina, seção Brasil (CEHILA-Brasil).
Veja mais em:
https://youtu.be/Nt2ze1jGlsM?si=rddFqccPfNqjyvNO
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