Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! A senhora Mina Nagô
Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
A senhora Mina Nagô
Corria o ano da graça de 1865, quando o sol do Império ainda ardia sobre os telhados de telha-vã da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, e as pedras da Rua do Ouvidor retinham o calor como retêm o segredo os confessionários.
A cidade, senhora de si e das vaidades alheias, exalava sua mescla de perfume francês e suor africano. Nos sobrados, dançava-se valsa; nas ruas, suava-se a enxada. E em cada esquina, em cada recanto, os olhos do povo eram guiados pelas mãos negras que costuravam a vida urbana: carregavam água, serviam café, amassavam o pão e a terra. Eram as mãos que, embora acorrentadas, sustentavam os alicerces da liberdade alheia.
Foi numa tarde em que me dei ao passeio — o mesmo que o tédio me ensinara — que entrei na loja do Sr. Fragoso, homem de bigode encerado e ambições fotográficas. Era um recanto escuro como o juízo de um ministro, mas animado por um sol artificial que se entornava da objetiva da câmera. Nas paredes, figuras: cavalheiros rígidos como defuntos ilustres, senhoras com olhos perdidos no tempo, e — eis o insólito — escravizados.
Sim, ali estavam eles, fixados em papel albuminado como borboletas sob o alfinete do colecionador. Homens e mulheres de olhar sério, quase sempre nus até a cintura, marcados com cicatrizes, colares ou apenas silêncio.
Uma imagem, porém, deteve minha curiosidade: o retrato de uma mulher de olhos tão fundamente resignados que pareciam falar. "Mina Nagô", dizia o letreiro. Nome nenhum. Idade, nenhuma. Como se a alma lhe fosse comum, e o tempo irrelevante. Era apenas Mina Nagô — origem, nação, etnia. A condição não se dizia: estava implícita, como o destino em tragédia grega.
Ali estava ela, vendida mais uma vez — agora não em leilão, mas em retrato. Um rosto exposto à vitrine para o espanto e o deleite do freguês. A escravidão, agora, ganhava moldura. E o silêncio daquela mulher, ah! esse era o mais eloquente dos discursos.
Saí da loja com um nó na garganta e a sensação de ter visto, não um retrato, mas um epitáfio sem túmulo.
● Imagem: Stahl, Augusto. Mina Nagô, 1865 circa/Instituto Moreira Salles.
● Clique no link abaixo e ouça a música de Jorge Ben Jor, "Zumbi", que ilustra a crônica:
https://youtu.be/ge5BZjVVKpQ?si=hpG4zj5JC3c43HgT
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