Análise da Canção "Morena de Angola" de Chico Buarque: Cultura, Política e Identidade Afro-Brasileira
A canção Morena de Angola, composta por Chico Buarque e lançada em 1980, é uma obra de rica complexidade poética, cultural e política. À primeira vista, pode parecer apenas uma ode sensual à mulher negra, mas um olhar mais atento revela uma profunda reverência à herança africana, especialmente angolana, e uma crítica velada à ordem social e política estabelecida.
A Estrutura da Letra e a Repetição Poética
A canção constrói-se sobre repetições envolventes: “Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela / Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela”. Essa estrutura não apenas reforça o ritmo como também destaca a tensão entre agente e objeto: quem comanda a ação? A morena ou o chocalho? Essa dúvida brinca com o poder que o corpo feminino exerce sobre o mundo ao seu redor, uma provocação delicada e sagaz à passividade imposta historicamente à mulher negra.
A Cultura Angolana e a Diáspora Africana
Angola aparece na canção não apenas como local geográfico, mas como espaço simbólico. Benguela, Catumbela e o prato “galinha à cabidela” são elementos concretos da cultura angolana. O uso da palavra “cabidela” remete diretamente à culinária banta, enquanto o nome das cidades transporta o ouvinte ao coração da África lusófona.
O Brasil, país moldado pela diáspora africana, é retratado aqui como um eco cultural de Angola. A morena da canção não é apenas angolana: ela é símbolo da mulher negra brasileira, herdeira de uma África viva, não apenas na memória, mas nos corpos, danças, sons e sabores.
Sexualidade, Autonomia e Resistência
Chico Buarque lida com o erotismo da personagem de forma ambígua e inteligente. Há humor e sensualidade: “Será que namora fazendo bochincho com seus penduricalhos?” — mas também há ação. A morena não é objeto do olhar masculino; ela é centro de gravidade, força que transforma até o “regimento”, fazendo “requebrar a sentinela”.
A personagem cozinha, dança, namora e luta. E mais: luta com estilo. É uma guerreira sedutora que, ao invés de ser domesticada, subverte a ordem com o próprio corpo. Quando o eu-lírico diz: “Morena, menina danada, minha camarada do MPLA”, afirma sua aliança não só afetiva, mas política com ela. O MPLA — Movimento Popular de Libertação de Angola — era, na época, símbolo da luta anti-colonial, da autodeterminação africana, da libertação das amarras do império português. Assim, a mulher sensual é também militante.
A Política do Corpo e a História Atlântica
A canção traça uma rota emocional entre África e Brasil. Do peixe de Benguela ao cacho do coração deixado em Catumbela, tudo é símbolo de uma identidade atlântica partilhada. O eu-lírico brasileiro reconhece que sua identidade está em parte lá — “deixei um cacho do meu coração na Catumbela” — porque o Brasil negro, o Brasil mestiço, é herdeiro direto da Angola escravizada, mas também da Angola viva, musical, resistente.
Nesse ponto, Morena de Angola se diferencia de outras representações do corpo negro na MPB. Chico não fetichiza; ele politiza. Ele usa o erotismo para revelar força, não submissão. O chocalho, amarrado à canela, deixa de ser adorno e vira tambor, arma, discurso.
A Linguagem: Mistura e Subversão
A letra brinca com palavras de origem popular, algumas com raízes africanas ou ibéricas populares: “bochincho”, “remelexo”, “penduricalho”. A musicalidade das palavras evoca o batuque, o gingado, a oralidade. Ao mesmo tempo, a sonoridade sugere um corpo em constante movimento, difícil de capturar ou conter — seja em clichês, seja em armadilhas políticas.
Chico também mistura registros: o cotidiano (a cozinha, o namoro, o sono), o sagrado (o corpo como ritmo), o épico (a guerra, o MPLA). Tudo cabe na canção porque tudo cabe no corpo da morena — símbolo sincrético de uma identidade negra transatlântica.
Uma Canção de Afeto e Militância
O verso final, “Morena, menina danada, minha camarada do MPLA”, é a chave de leitura para a canção. Ele coroa a trajetória da personagem como mais que musa: ela é uma mulher de combate, uma líder, alguém que inspira, move e desafia a ordem patriarcal e colonial. Ela representa uma mulher negra não domesticada, mas protagonista.
Ao falar de Angola, Chico fala do Brasil. Ao cantar a morena, canta a resistência afrodescendente. Ao brincar com o chocalho, reverbera um tambor histórico. E ao dizer que deixou um cacho de coração na Catumbela, declara amor a uma ancestralidade viva, orgulhosa, altiva.
Conclusão
Morena de Angola é, sem dúvida, uma das canções mais sofisticadas e sutis de Chico Buarque. Por trás de sua melodia contagiante e versos repetitivos, esconde-se um manifesto afrodiaspórico. É uma canção sobre amor, sobre luta, sobre memória, sobre política.
Ao cantar a morena que dança, cozinha e milita, Chico Buarque homenageia as mulheres negras que moldaram a cultura brasileira e reafirma o papel vital da África em nossa identidade. Mais que um elogio, é uma restituição. Mais que um samba, é uma alegoria da sobrevivência.
Num país que muitas vezes apagou a contribuição africana, Morena de Angola é um lembrete sonoro de que África e Brasil continuam dançando — e lutando — juntos, com o chocalho preso à canela e o coração pulsando no ritmo da história.
● A letra da canção:
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Será que a morena cochila escutandoo cochicho do chocalho
Será que desperta gingando e já sai chocalhando pro trabalho
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Será que ela tá na cozinha guisando a galinha à cabidela
Será que esqueceu da galinha e ficou batucando na panela
Será que no meio da mata, na moita, a morena inda chocalha
Será que ela não fica afoita pra dançar na chama da batalha
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Passando pelo regimento ela faz requebrar a sentinela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Será que quando ela vai pra cama a morena se esquece dos chocalhos
Será que namora fazendo bochincho com seus penduricalhos
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Será que ela tá caprichando no peixe que eu trouxe de Benguela
Será que tá no remelexo e abandonou meu peixe na tigela
Será quando fica choca põe de quarentena o seu chocalho
Será que depois ela bota a canela no nicho do pirralho
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Eu acho que deixei um cacho do meu coração na Catumbela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Morena, menina danada, minha camarada do MPLA
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
Morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela
● Ao clicar no link abaixo, ouça a canção na interpretação magistral de Clara Nunes:
https://youtu.be/eBVpMd0eMZU?si=UvZx-3bc0e9_sQTL
● Se este conteúdo lhe foi útil ou o fez refletir, considere apoiar espontaneamente este espaço de História e Memória. Cada contribuição ajuda no desenvolvimento do blog. Chave PIX: oogrodahistoria@gmail.com
Muito obrigado, com apreço.
Comentários
Postar um comentário
Agradecemos o seu comentário. Isto nos ajuda no desenvolvimento deste blog.