Em meio às bombas, eles riram: os jornais de trincheira da Primeira Guerra Mundial
Três soldados canadenses são flagrados lendo jornal e sorriem para a foto. 21 de Fevereiro de 1918, em Lens. Foto: Rider-Rider, ID 3404868.
15 de julho de 2025 por Bruno Leal
Em um dia frio de janeiro de 1916, o Capitão F.J. “Fred” Roberts, um engenheiro de 33 anos, da 24ª Divisão britânica em Ypres, na Bélgica, encontrou uma gráfica. O lugar estava destruído pela artilharia alemã, como quase tudo na cidade. Havia pedras, poeira e escombros em todas as partes. Roberts e seu grupo notaram que soterrada, morta num canto abandonado, estava uma impressora. Um sargento do seu regimento disse que podia consertar o equipamento. Roberts autorizou, e dito e feito: a máquina voltou à vida. Alguns dias depois, Roberts e o Tenente J.H. “Jack” Pearson, de 29 anos, se tornaram editores do The Wipers Times, o jornal de trincheira britânico mais popular da Primeira Guerra Mundial.
O que é um jornal de trincheira?
Os jornais de trincheira eram produzidos por combatentes para outros combatentes. Apesar do nome, eles não eram feitos apenas nas trincheiras, mas em várias outras zonas do conflito, desde posições de retaguardas e cidades ocupadas até hospitais. Eram diferentes entre si – podiam ser impressos ou manuscritos, ter uma ou vinte páginas, vendidos ou gratuitos, durar anos ou algumas semanas. Eles circularam entre unidades dos exércitos britânico, francês, americano, alemão, italiano, canadense, australiano e neozelandês.
Como eram feitos em condições precárias, não sabemos exatamente quantos, de fato, existiram. Mas os historiadores têm uma ideia de onde eles foram mais populares. Até o momento, a historiografia identificou 107 jornais de trincheira nos exércitos britânicos e de seus domínios, 400 nos franceses, 100 nos alemães e pelo menos 50 entre os italianos. No pequeno exército belga remanescente, foram registrados 249 jornais de trincheira, 131 em neerlandês e 148 em francês.
Se havia algo em comum entre esses jornais, era o humor. Eles faziam piada de absolutamente tudo: dos inimigos, de si, das condições precárias da vida no front, da destruição da guerra ou de seus oficiais. Para isso, lançavam mão de paródias, sátiras, ironias e deboches. Havia colunas de todos os tipos: correspondência amorosa, charges, cartas aos leitores, dicas de moda e poesias. O jornal da 66ª unidade de infantaria francesa chamava-se Sans tabac!, uma piada com a escassez do produto mais procurado pelo soldado, enquanto o The Dead Horse Corner Gazette, do 4º batalhão canadense, informava debochadamente no cabeçalho a sua periodicidade: “publicado quando possível”. O The Wipers Times, de Pearson e Roberts, que circulou em Ypres, na Bélgica, entre fevereiro de 1916 e dezembro de 1918, publicou certa vez um anúncio inventado que vendia aos soldados das trincheiras locais um magnífico seguro de vida contra…ataques submarinos!
Como boa parte das tropas era alfabetizada, a circulação de mão em mão desses jornais encontrava muitos leitores. Desta forma, a leitura dos jornais de trincheira deve ser compreendida como parte de uma rotina de entretenimento, descanso ou prazer dos soldados, ao lado de outras atividades igualmente importantes para a moral, como a prática de esportes, peças teatrais, jogos de tabuleiro e a leitura de livros. Mas era também por meio desses jornais que as tropas se atualizavam sobre o que acontecia em “casa”, que formavam visões de mundo e tinham acesso a narrativas que nem sempre coincidiam com aquelas difundidas pelos governos e pelos grandes veículos de imprensa.
Onde encontrar, hoje, jornais de trincheira
A maioria dos jornais de trincheira existiu somente durante a Primeira Guerra Mundial, mas, ainda assim, muitos sobreviveram ao conflito, em grande medida preservados por soldados que enviaram cópias desses exemplares para casa ou para arquivos e bibliotecas – o portal Gallica, da Biblioteca Nacional da França, informa que em junho de 1915, o jornal francês Le Petit já fazia um apelo para que os soldados enviassem os jornais de trincheira a fim de preservação.
Há coleções de jornais de trincheira hoje em diversos portais, como no do Canadian War Museum, o Imperial War Museum ou da Cambridge University. Cerca de 130 títulos franceses podem ser consultados, por exemplo, no acervo digital do Gallica. Estão lá as coleções de jornais de trincheira famosos, caso do Bellica, do Boum! Voilá!, do Le Canard Poilu e L’Écho des Tranchées, apenas para citar alguns. O projeto Europeana também reúne 905 edições de dezenas de jornais de trincheira italianos, como Il Grigio Verde, La Trincea, Gli Avvenimenti, L’eco Caricaturista, La Scintilla Caricaturista. La Tradotta é um dos mais especiais da coleção, pois é o que mais possui histórias em quadrinhos em seu miolo. Quer começar pelo mencionado The Wipers Times? Ele está de graça neste link: https://archive.org/details/isbn_9780333473344
História vista de baixo
Os jornais de trincheira da Primeira Guerra Mundial são um exemplo de fonte histórica que pode ser utilizada para a construção de uma história vista de baixo. Eles revelam, afinal de contas, aspectos da vida cotidiana, das relações interpessoais, das condições materiais e das ideologias dos combatentes. Permitem também, por isso, uma compreensão mais ampla, mais plural, democrática e profunda da experiência humana na guerra, além de evidenciar as contradições, os conflitos e as resistências dos soldados frente ao poder estabelecido.
O historiador Nicolas Beaupré ressalta, com razão, que “o testemunho combatente ocupa hoje um lugar central na renovação da historiografia da Grande Guerra através da história cultural ou social e nas controvérsias que a acompanham”. Nada mais justo, portanto, reconhecer e valorizar os jornais de trincheira e as demais produções culturais desses combatentes-jornalistas – eles estiveram lá, na guerra, viram o que foram aqueles anos, e nós, não.
Referências
AUDOIN-ROUZEAU, Stephane Men at War, 1914-1918: National Sentiment and Trench Journalism in France during the First World War Trans. Helen McPhail
AUDOUIN-ROUZEAU, Stéphane; AUDOIN-RUZEAU, Stéphane. Les soldats français et la nation de 1914 à 1918 d’après les journaux de tranchées. Revue d’histoire moderne et contemporaine (1954-), v. 34, n. 1, p. 66-86, 1987.
BERTRAND, Frédérick. La représentation des souffrances et des horreurs de la Première Guerre mondiale dans les journaux de tranchées. 2018. Tese de Doutorado. Université Laval.
BLOCH, Marc. Reflexões de um historiador sobre as falsas notícias da guerra. História e historiadores. Textos reunidos por Étienne Bloch. Lisboa: Editorial Teorema, p. 177-197, 1998.
BOYCE, George; CURRAN, James; WINGATE, Pauline. Newspaper history from the seventeenth century to the present day. Beverly Hills, 1978.
CHARMAN, Terry. Trench Journal. In: HAWKINS, Mark. The First World War A |Z. Londres: Imperial War Museum, 2014.
CHARPENTIER, André. Feuilles bleu horizon 1914-1918. (No Title), 1935.
FULLER, John Grant. Troop morale and popular culture in the British and Dominion armies 1914–1918. G. Books 1991.
HISLOP, Ian; NEWMAN, Nick. The Wipers Times. Londres: Samuel French, 2016.
SONDHAUS, Lawrence. A primeira guerra mundial: história completa. São Paulo: Contexto, 2015.
Nota: CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Em meio às bombas, eles riram: os jornais de trincheira da Primeira Guerra Mundial (artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/jornais-de-trincheira/?utm_source=substack&utm_medium=email ISSN: 2674-5917. Publicado em: 15 de julho de 2025.
Bruno Leal
Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas, justiça no pós-guerra e as duas guerras mundiais. Autor de "Quero fazer mestrado em história" (2022) e "O homem dos pedalinhos"(2021).
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