O Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe: Hegemonia e Intervenção no Hemisfério Ocidental


Introdução

Desde sua proclamação em 1823, a Doutrina Monroe representou um divisor de águas na política externa norte-americana. Concebida inicialmente como um manifesto contra as intervenções europeias nas recém-independentes nações da América Latina, seu mote – “América para os americanos” – sugeria um compromisso com a autodeterminação continental. No entanto, ao longo do século XIX, essa doutrina foi sucessivamente reinterpretada para se adaptar aos interesses estratégicos e econômicos dos Estados Unidos. Entre essas reformulações, or Corolário Roosevelt, de 1904, destaca-se como o ponto de inflexão definitivo, ao transformar o espírito defensivo da Doutrina Monroe em uma política declaradamente intervencionista, especialmente na América Central e Caribe.

Este texto se propõe a analisar em profundidade o conteúdo, o contexto e os desdobramentos do Corolário Roosevelt, explorando suas raízes doutrinárias, suas aplicações práticas e sua repercussão no cenário internacional e latino-americano.

I. As Raízes da Doutrina Monroe

Em 1823, quando a Doutrina Monroe foi anunciada pelo então presidente James Monroe, os Estados Unidos buscavam consolidar sua posição como potência regional em um continente em transformação. As independências das ex-colônias espanholas e portuguesas geraram um vácuo de poder, e havia o temor de que as monarquias europeias tentassem recolonizar o hemisfério. A Doutrina Monroe nasceu como resposta a esse cenário: não pretendia interferir nos assuntos internos da Europa, mas exigia reciprocidade no hemisfério ocidental. Ainda que retoricamente altruísta, o gesto também servia aos interesses estratégicos de uma potência em ascensão.

Com o tempo, essa doutrina passou por reinterpretações. Corolários como os de Henry Clay (1825), James Polk (1845), Ulysses Grant (1871) e Richard Olney (1895) modificaram seu alcance e propósito. Especialmente o corolário Olney, ao mediar a crise de fronteiras entre Venezuela e Guiana Britânica, já indicava uma mudança significativa: os EUA não mais apenas resistiam a intervenções, mas passavam a se declarar árbitros legítimos nos conflitos regionais.

II. Imperialismo e a Guerra Hispano-Americana

O fim do século XIX assistiu à ascensão dos Estados Unidos como potência imperial. A Guerra Hispano-Americana de 1898 marcou a entrada do país no circuito das grandes potências coloniais. Após anos de instabilidade em Cuba, o pretexto para a intervenção veio com a explosão do encouraçado USS Maine no porto de Havana. A imprensa sensacionalista (a “imprensa amarela”) culpou os espanhóis, e a guerra foi rapidamente declarada.

Em poucos meses, os EUA derrotaram a Espanha e assumiram o controle de Porto Rico, Guam e Filipinas, além de consolidar sua influência em Cuba. O episódio revelou o pragmatismo estratégico da Doutrina Monroe: embora o discurso fosse de apoio à independência cubana, a Emenda Platt (1901) limitava severamente a soberania da ilha, permitindo ocupações militares e a instalação de bases, como a de Guantánamo. Cuba transformou-se, assim, num protetorado norte-americano.

III. A Ascensão de Theodore Roosevelt

Com o assassinato do presidente William McKinley em 1901, Theodore Roosevelt assume a presidência e imprime um novo ritmo à política externa dos EUA. Militarista convicto, defensor do darwinismo social e da superioridade da civilização anglo-saxônica, Roosevelt acredita que os EUA têm uma missão civilizatória no mundo.

Sua política externa foi sintetizada na célebre frase: “Speak softly and carry a big stick; you will go far” “Fale macio e carregue um grande porrete; você irá longe.” Com isso, Roosevelt sinalizava que os EUA deviam combinar diplomacia com força militar. A expressão passou a definir a Big Stick Policy, uma forma norte-americana de “diplomacia das canhoneiras”.

IV. O Corolário Roosevelt: Uma Nova Doutrina de Intervenção

Em sua mensagem ao Congresso em dezembro de 1904, Roosevelt proclamou o Corolário à Doutrina Monroe, justificando a possibilidade de intervenção nos países do Hemisfério Ocidental em caso de “irregularidades crônicas” ou “incapacidade” de governar. A medida visava evitar que tais situações levassem à intervenção de potências europeias – ou seja, os EUA interviriam preventivamente para garantir a ordem e proteger seus próprios interesses.

Na prática, o corolário legitimava intervenções armadas, sob o pretexto de garantir estabilidade e civilização. Ele formalizou uma prática já existente e projetou os EUA como “polícia internacional” nas Américas. Era o nascimento oficial do intervencionismo norte-americano como política sistemática.

Corolário de Roosevelt: O presidente Theodore Roosevelt patrulhando o Caribe com seu "Big Stick" em uma charge política de William Allen Rogers, 1904.

V. O Caso Venezuelano e a Doutrina Drago

O episódio que motivou diretamente o corolário ocorreu em 1902, quando Alemanha, Reino Unido e Itália impuseram um bloqueio naval à Venezuela para cobrar dívidas. O governo venezuelano resistia à negociação, e os europeus bombardearam portos e afundaram navios venezuelanos. A tensão levou os EUA a mediar o conflito, exigindo que não houvesse ocupação territorial.

A crise levou o chanceler argentino Luis María Drago a propor a Doutrina Drago, segundo a qual o uso da força para cobrança de dívidas era ilegítimo. A proposta foi rejeitada por Roosevelt, que insistia no direito das nações “civilizadas” de intervir para garantir a ordem.

VI. O Canal do Panamá e a Intervenção Permanente

Um dos maiores legados da Big Stick Policy foi a construção do Canal do Panamá. Inicialmente, os EUA tentaram negociar com a Colômbia, à qual o Panamá pertencia. Diante da recusa do Senado colombiano em ratificar o Tratado Hay-Herrán, os EUA apoiaram a independência do Panamá em 1903. Quinze dias após a proclamação da independência panamenha, firmou-se o Tratado Hay-Bunau-Varilla, garantindo aos EUA controle sobre a Zona do Canal.

A manobra revelou a disposição dos EUA de usar a força e manipular processos políticos para atingir seus objetivos estratégicos. O canal, construído entre 1907 e 1914, consolidaria a posição norte-americana no Caribe e no Pacífico.

VII. A Reação Brasileira e a Aliança Não Escrita

No Brasil, a ascensão da política intervencionista norte-americana foi acompanhada com cautela, mas não com hostilidade. O então chanceler Barão do Rio Branco, homem pragmático e estrategista, avaliava que os interesses do Brasil não colidiam com os dos EUA naquele momento. Tendo o país estabilizado sua economia no governo Campos Sales e consolidado a República, o Brasil não representava risco de intervenção.

Rio Branco recusou qualquer endosso à Doutrina Drago e aprofundou relações com os EUA, promovendo um alinhamento diplomático informal, que o historiador Bradford Burns chamaria de "aliança não escrita". O temor argentino de que o Brasil desempenhasse papel de “subimperialista” na região sul-americana passou a circular em meios diplomáticos, especialmente após a modernização da Marinha brasileira, em 1904.

VIII. Projeção Global: A América como Trampolim

O corolário Roosevelt não se limitava à América Latina. Ele fazia parte de um projeto maior de projeção global dos Estados Unidos. Roosevelt entendia que uma potência respeitada deveria também intervir nos assuntos do Velho Mundo. Em 1905, mediou o fim da Guerra Russo-Japonesa com o Tratado de Portsmouth, o que lhe rendeu o Prêmio Nobel da Paz.

Em 1907, ordenou a viagem da Great White Fleet, uma frota de 16 encouraçados que realizou uma circunavegação global até 1909. O gesto era diplomático e simbólico: os EUA demonstravam seu alcance naval e sua disposição em atuar como potência de primeira ordem, rivalizando com Impérios tradicionais como o britânico, o francês e o alemão.

IX. A Diplomacia do Dólar e os Limites do Porrete

O sucessor de Roosevelt, William Howard Taft, manteve os objetivos do corolário, mas tentou substituí-lo por métodos financeiros. Sua política, conhecida como Dollar Diplomacy, visava garantir estabilidade e proteger interesses norte-americanos por meio de empréstimos, bancos e investimentos, ao invés de fuzileiros navais. A ideia era “comprar” a estabilidade, sobretudo nos países do Caribe.

No entanto, quando a diplomacia falhava, os marines continuavam sendo mobilizados. Houve intervenções na Nicarágua (1912 e 1927), México (1914), Haiti (1915) e República Dominicana (1916). Os EUA impunham governos, controlavam alfândegas e reorganizavam sistemas financeiros locais, sob o argumento de manter a ordem hemisférica.

X. O Fim da Big Stick Policy e a Política da Boa Vizinhança

A política do Grande Porrete começou a ruir com a crise econômica de 1929 e o desgaste da imagem dos EUA na América Latina. A chegada de Franklin Delano Roosevelt ao poder em 1933 marcou o início da Política da Boa Vizinhança. Abandonou-se o intervencionismo militar direto, substituindo-o por cooperação diplomática, cultural e econômica.

FDR revogou a Emenda Platt, retirou tropas do Haiti e promoveu acordos comerciais. A nova política buscava conter o avanço do fascismo e manter a influência norte-americana por meios “soft”. Apesar disso, a estrutura de dominação hemisférica construída pelo corolário Roosevelt permaneceu como substrato das relações interamericanas durante toda a Guerra Fria.

Conclusão

O Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe foi uma das mais decisivas inflexões na história da política externa dos Estados Unidos. Ele formalizou a intervenção preventiva, legitimou o uso da força em nome da estabilidade e consolidou a hegemonia norte-americana no hemisfério ocidental. Embora justificado por discursos de civilização e progresso, seu efeito prático foi a subordinação da soberania dos países latino-americanos aos interesses estratégicos dos EUA.

As lições deixadas por essa doutrina ainda ecoam. O intervencionismo militar deu lugar, em muitos casos, a pressões diplomáticas, financeiras e culturais. Mas a lógica de tutela permanece: quando os EUA percebem que seus interesses estão ameaçados no hemisfério, agem.

Estudar o Corolário Roosevelt é, portanto, refletir sobre os limites da soberania nacional em um sistema internacional hierárquico e sobre a trajetória de uma superpotência que, desde cedo, combinou moralismo e poder bélico para construir seu império.

Cartum de 1904 sobre a diplomacia americana sob o presidente Theodore Roosevelt. Fonte: Picryl


Indicação de leituras:

● República imperial: os Estados Unidos no mundo do pós-guerra por Raymond Aron

● História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI por Leandro Karnal

● História concisa dos Estados Unidos da América por Susan-Mary Grant 

Veja mais em: 

https://youtu.be/X8OeW8mXiO0?si=b3Y6fyBJphGPj52b


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