Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! A nobre arte dos socos e das ilusões
Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
Por um cronista de caneta afiada e punhos inofensivos
“Mens sana in corpore sano”, escreveu o poeta romano Juvenal, talvez após observar um gladiador fugindo da arena com a dignidade intacta e o fígado preservado. Inspirado por tal máxima — e pelo tédio de uma tarde preguiçosa em que até o gato renegava o rato por fastio — aceitei o convite da Brasil Boxing Club para assistir a um combate em pleno Campo de Santana, esse jardim da República que mais parece uma passarela para patos e generais aposentados.
Lá fui eu, armado de paletó, chapéu e desconfiança. O Rio de Janeiro da década de 1930, meus senhores, é um palco onde o inusitado se apresenta sem ensaio. Havia de tudo naquele gramado democrático: senhores de bigodes lustrosos e chapéus alinhados, vendedores de amendoim, moças que fingiam escândalo, e um entusiasmo coletivo que faria inveja ao Senado.
Eis então que surgem os lutadores. O primeiro, um magrelo de aparência tão frágil que parecia ter escapado de uma vitrine do Museu Nacional — múmia esquelética, com mais cotovelos do que músculos. O segundo, um colosso de carne e suor, com braços do tamanho de promessas eleitorais e andar de rinoceronte com ressaca.
O desastre era anunciado e esperado com a sofreguidão de quem espera pelo terceiro ato da tragédia. O magrelo, justiça seja feita, era ágil. Esquivava-se como quem foge da conta no botequim. Já o gigante, lento e determinado, desferia seus socos como se derrubasse postes. Cada golpe no ar arrancava da multidão um suspiro: de alívio, claro — pois se um daqueles encontrasse o alvo, teríamos que chamar o IML e um padre.
As belezas do Campo de Santana, com seus lagos, estátuas e árvores românticas, foram solenemente ignoradas. Tudo estava concentrado naquela troca de tapas consentida e glorificada.
O boxe! Essa poesia de punhos, essa ópera de hematomas! Dizem que ele eleva o espírito, fortalece o corpo e distrai a alma. Mas eu, cético e ainda com todos os dentes, confesso: prefiro um bom livro — me nocauteia menos e me deixa mais culto.
https://youtu.be/UWgWJn-FFJM?si=hdvNXFjJq9XxkWFJ
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