Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Gases da liberdade


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


Gases da liberdade

Era o ano de 1888 e o Império, entre uma asma monárquica e um pigarro de crise, resolveu libertar seus escravizados com a graça de uma pena dourada — assinada, é claro, pela augusta mão da Princesa Isabel. Um gesto nobre, ainda que tardio como um pedido de desculpas feito no leito de morte. E eu, cronista otimista por vício e constipado por ironia, imaginei que o Brasil, agora livre de grilhões, caminharia para uma era de justiça social. Lêdo engano. Mas deixemos esse sopro de desilusão para depois.

Voltemos ao que me trouxe a esta pena: meus gases. Sim, leitor, minha angústia não era política — ao menos não diretamente. Era gástrica. Flatulências tempestuosas agitavam meu íntimo como se soldados invisíveis marchassem em protesto no meu intestino. Decidi, então, procurar alívio no templo da ciência e dos perfumes: a Casa Granado. A que ostentava o título de Farmácia Oficial da Família Imperial.

Que botica! Fundada em tempos respeitáveis por José de Barros Franco e o português Coxito Granado — nome que já soa a bálsamo —, situava-se na Rua Direita, hoje chamada Primeiro de Março, numa dessas tentativas de rebatizar a história com pompas calendáricas. Lá, vendiam-se não apenas elixires contra males humanos, mas também cremes que prometiam beleza eterna e sabonetes mais aromáticos que os delírios de um poeta romântico.

Adentrei o recinto como quem busca a cura da alma e da barriga. Pedi algo contra os ventos intestinais e fui atendido com a solenidade que se reserva a um ministro adoentado. O boticário, figura de respeitável bigode e paciência de monge, indicou-me um preparado que prometia expulsar os tormentos estomacais com a mesma eficácia com que se expulsavam ideias progressistas do Senado.

Tomei ali mesmo, entre os frascos. Arrotei a história.

E então percebi, com um alívio triste, que o Império libertara os corpos, mas deixara os espíritos acorrentados. A abolição não desceu até os poros da nação — ficou na epiderme da lei. Enquanto isso, eu, liberto dos meus gases, seguia apertado por outra prisão: a do Brasil que perfuma as vitrines e apodrece nos porões.

Ah, que remédio há para um país que cura ventres, mas esquece corações?


● Imagem: Ferrez, Marc. Pharmacia Drogaria Granado and Ca, 1888, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional

● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Espinha de bacalhau", interpretada pelo grupo Samba e Choro de Quintal. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/sadaoseDnaU?si=WkrZ84viqUQd8JUj


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Muito obrigado, com apreço.

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