Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Gases da liberdade
Gases da liberdade
Era o ano de 1888 e o Império, entre uma asma monárquica e um pigarro de crise, resolveu libertar seus escravizados com a graça de uma pena dourada — assinada, é claro, pela augusta mão da Princesa Isabel. Um gesto nobre, ainda que tardio como um pedido de desculpas feito no leito de morte. E eu, cronista otimista por vício e constipado por ironia, imaginei que o Brasil, agora livre de grilhões, caminharia para uma era de justiça social. Lêdo engano. Mas deixemos esse sopro de desilusão para depois.
Voltemos ao que me trouxe a esta pena: meus gases. Sim, leitor, minha angústia não era política — ao menos não diretamente. Era gástrica. Flatulências tempestuosas agitavam meu íntimo como se soldados invisíveis marchassem em protesto no meu intestino. Decidi, então, procurar alívio no templo da ciência e dos perfumes: a Casa Granado. A que ostentava o título de Farmácia Oficial da Família Imperial.
Que botica! Fundada em tempos respeitáveis por José de Barros Franco e o português Coxito Granado — nome que já soa a bálsamo —, situava-se na Rua Direita, hoje chamada Primeiro de Março, numa dessas tentativas de rebatizar a história com pompas calendáricas. Lá, vendiam-se não apenas elixires contra males humanos, mas também cremes que prometiam beleza eterna e sabonetes mais aromáticos que os delírios de um poeta romântico.
Adentrei o recinto como quem busca a cura da alma e da barriga. Pedi algo contra os ventos intestinais e fui atendido com a solenidade que se reserva a um ministro adoentado. O boticário, figura de respeitável bigode e paciência de monge, indicou-me um preparado que prometia expulsar os tormentos estomacais com a mesma eficácia com que se expulsavam ideias progressistas do Senado.
Tomei ali mesmo, entre os frascos. Arrotei a história.
E então percebi, com um alívio triste, que o Império libertara os corpos, mas deixara os espíritos acorrentados. A abolição não desceu até os poros da nação — ficou na epiderme da lei. Enquanto isso, eu, liberto dos meus gases, seguia apertado por outra prisão: a do Brasil que perfuma as vitrines e apodrece nos porões.
Ah, que remédio há para um país que cura ventres, mas esquece corações?
● Imagem: Ferrez, Marc. Pharmacia Drogaria Granado and Ca, 1888, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional
● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Espinha de bacalhau", interpretada pelo grupo Samba e Choro de Quintal. A música ilustra essa crônica:
https://youtu.be/sadaoseDnaU?si=WkrZ84viqUQd8JUj
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