Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Do ventre quase livre
Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
Do ventre quase livre
Por um certo cronista do Catete, discípulo de ironias e observações impertinentes
Era o ano da graça — ou da desgraça — de 1875, e o Rio de Janeiro, essa cidade entre o morro e o mar, entre o sonho inglês do progresso e a realidade tropical da senzala, tentava esgueirar-se na modernidade. Tentava, veja bem, como quem põe cartola na cabeça de um escravizado e diz que agora é cidadão. O imperador, homem de ciência e barbas respeitáveis, frequentador de telescópios e dicionários, nutria encantos pelas luzes da Europa — mas parece que as luzes não alcançavam o porão dos navios negreiros.
Pois bem, nesse espírito de civilidade tropical, saí do meu canto no Catete com a intenção de comprar frutas e um doce qualquer. Era verão, e o suor escorria da testa como escorre a moral das leis mal escritas. Segui à Rua da Quitanda, batizada por aquilo mesmo que nela se vendia: bananas, abacaxis, esperanças em rodelas.
Ali encontrei quatro mulheres sentadas à altura do chão, seus olhos mais antigos que o próprio Império e um certo banzo. Eram negras, escravizadas de ganho, expressão essa que parece indicar alguma vantagem, mas só revela a matemática da servidão. Uma delas, chamada Antônia, me disse que estavam ali desde as cinco da manhã. Cinco horas! E eu, que achava heróico acordar às oito.
Duas eram mães e me contaram, quase com uma pontinha de alegria resignada, que seus filhos haviam nascido livres, graças à tal Lei do Ventre Livre de 1871. Lei esta que é mais ventre do que livre — pois a criança, ao que parece, trocava o nome da servidão pelo da tutela, e o ferro pelo favor. O senhor decidia: ou a libertava mediante indenização do Estado (que nunca era pontual), ou a mantinha até os 21 anos — tempo bastante para espremer toda a liberdade recém-nascida.
Comprei as frutas e os doces, sim. Mas saí de lá com gosto amargo na boca e uma certeza no pensamento: há leis que nascem para fazer bonito no papel e feio na vida. E há escravidões que, mesmo com véu jurídico, continuam gritando sob o sol de janeiro. Meu caro leitor, nesse Império das aparências, até a liberdade tem algemas invisíveis — e o ventre livre, por ora, ainda caminha de joelhos.
● Imagem: Ferrez, Marc. Quitandeiras, 1875 circa. Rio de Janeiro, RJ, Brasil/Instituto Moreira Salles
● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Lamentos" do Pixinguinha e interpretado por Jacob do Bandolim. A música ilustra essa crônica:
https://youtu.be/tvtIsnxfLrA?si=QKwDF9OymBhnrTj8
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