Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Um amor suburbano
Um amor suburbano
Por um cronista que perdeu o trem, mas ganhou inspiração
Há quem diga, com ar de sabedoria herdada do bonde 62, que o Rio de Janeiro se divide entre o mar e o morro. Tolice. O Rio, meu caro leitor, também se esparrama em trilhos, estuques rachados, varais pendurados e corações descascados nos subúrbios. Ah, os subúrbios! Esses lugares onde a vida anda de chinelo, o tempo é medido pelo apito do trem e o amor, esse malcriado, insiste em morar em casas geminadas com a desilusão.
Na minha última jornada despretensiosa — repare como a despretensão tem me guiado mais do que o destino — peguei o trem na estação de São Cristóvão e fui até onde a razão se despede e só a alma continua: Méier, Piedade, Engenho Novo, Madureira… Em cada bairro, uma música não cantada; em cada rosto, um refrão cansado.
Vi, por exemplo, um rapaz sentado no banco da praça de Bento Ribeiro, cantando baixinho uma melodia sofrida: “Eu me perdi no canto do meu viver, sem saber a razão de tanto sofrer…” e entendi ali, sob o sol de 13 horas e a sombra tímida de uma goiabeira, que ele falava comigo. Ou melhor: falava por mim.
Porque o amor, essa pedra valiosa, como bem disse o poeta suburbano, precisa de carinho constante. Mas o que mais falta nos subúrbios — além de asfalto — é constância. O trem atrasa, o salário atrasa, mas o afeto é pontual. As moças se pintam com esperança e os rapazes andam com o rosto estampado de dignidade.
Ainda assim, há uma beleza silenciosa no amor suburbano. Ele é sofrido, sim, mas é inteiro. Amam-se nos portões, entre grades e promessas, mesmo que tudo desabe depois da última prestação da geladeira. Há nesse amor uma chama intensa, que não se apaga, apenas muda de endereço.
Falei com meu coração, como o outro falou com o dele, e percebi: até cheguei perto da razão — mas tropecei na calçada esburacada do sentimento. Porque, veja bem, quem nunca se perdeu no amor, apenas passou pela vida como um trem vazio passando pela estação de Quintino: barulhento, apressado e sem levar ninguém.
E o antigamente? Ah, esse ainda passa devagar. Como convém aos que sabem sofrer com elegância.
● Imagem: Malta, Augusto. Rua Figueira de Mello 30/01/1922, São Cristóvão, Rio de Janeiro. Instituto Moreira Salles
● Clique no link abaixo e ouça o samba "Canto do meu viver" de Dona Ivone Lara. A música ilustra essa crônica:
https://youtu.be/nE_rLzfYTO4?si=CKJyvOOXipbVFCzy
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