Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Um amor suburbano


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
 

Um amor suburbano

Por um cronista que perdeu o trem, mas ganhou inspiração

Há quem diga, com ar de sabedoria herdada do bonde 62, que o Rio de Janeiro se divide entre o mar e o morro. Tolice. O Rio, meu caro leitor, também se esparrama em trilhos, estuques rachados, varais pendurados e corações descascados nos subúrbios. Ah, os subúrbios! Esses lugares onde a vida anda de chinelo, o tempo é medido pelo apito do trem e o amor, esse malcriado, insiste em morar em casas geminadas com a desilusão.

Na minha última jornada despretensiosa — repare como a despretensão tem me guiado mais do que o destino — peguei o trem na estação de São Cristóvão e fui até onde a razão se despede e só a alma continua: Méier, Piedade, Engenho Novo, Madureira… Em cada bairro, uma música não cantada; em cada rosto, um refrão cansado.

Vi, por exemplo, um rapaz sentado no banco da praça de Bento Ribeiro, cantando baixinho uma melodia sofrida: “Eu me perdi no canto do meu viver, sem saber a razão de tanto sofrer…” e entendi ali, sob o sol de 13 horas e a sombra tímida de uma goiabeira, que ele falava comigo. Ou melhor: falava por mim.

Porque o amor, essa pedra valiosa, como bem disse o poeta suburbano, precisa de carinho constante. Mas o que mais falta nos subúrbios — além de asfalto — é constância. O trem atrasa, o salário atrasa, mas o afeto é pontual. As moças se pintam com esperança e os rapazes andam com o rosto estampado de dignidade.

Ainda assim, há uma beleza silenciosa no amor suburbano. Ele é sofrido, sim, mas é inteiro. Amam-se nos portões, entre grades e promessas, mesmo que tudo desabe depois da última prestação da geladeira. Há nesse amor uma chama intensa, que não se apaga, apenas muda de endereço.

Falei com meu coração, como o outro falou com o dele, e percebi: até cheguei perto da razão — mas tropecei na calçada esburacada do sentimento. Porque, veja bem, quem nunca se perdeu no amor, apenas passou pela vida como um trem vazio passando pela estação de Quintino: barulhento, apressado e sem levar ninguém.

E o antigamente? Ah, esse ainda passa devagar. Como convém aos que sabem sofrer com elegância.


● Imagem: Malta, Augusto. Rua Figueira de Mello 30/01/1922, São Cristóvão, Rio de Janeiro. Instituto Moreira Salles


● Clique no link abaixo e ouça o samba "Canto do meu viver" de Dona Ivone Lara. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/nE_rLzfYTO4?si=CKJyvOOXipbVFCzy


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Muito obrigado, com apreço.

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