Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Um Chapéu ao Sol


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


 Um Chapéu ao Sol

Acordei, caro leitor, numa manhã de 1918 com o céu mais azul que a alma de um poeta apaixonado. Parecia uma tela de Monet, caso o francês tivesse passado uma temporada em Paquetá. Julguei ser sinal dos céus — e quando os céus sorriem, este cronista não hesita: vesti meu terno de linho branco, alvejado pela esperança de um Brasil ilustrado, calcei botas que não conheciam lama, e ajeitei, com a dignidade que só um flâneur tropical pode ter, meu novo chapéu da Chapelaria Alberto — peça tão garbosa que logo ganhou nome próprio: Chapéu Sol, não pela proteção, mas pelo esplendor.

E lá fui eu, ao Cosme Velho, tomar a elegante Estrada de Ferro do Corcovado, joia belga inaugurada em 1884 e posta sobre trilhos pela vontade do imperador Pedro II, cuja melancolia oitocentista ainda pairava sobre o morro. Subi como um monarca deposto, com ares de quem procura o espírito da pátria no alto da montanha.

No mirante, o mundo se abriu. A baía da Guanabara reluzia feito promessa de civilização. A Pedra da Gávea resplandecia como esfinge tropical; o Pão de Açúcar se insinuava doce aos olhos; Copacabana, um convite ao pecado marítimo; e a Serra dos Órgãos, com seus contornos celestiais, abençoava a paisagem com dignidade europeia.

Sim, a Belle Époque carioca parecia alcançar o zênite. Do alto, via-se um Rio de Janeiro quase parisiense, se a vista terminasse ali — no postal.

Mas, maldita altitude inebriante que nos rouba os detalhes! Do alto, a ilusão republicana era perfeita: não se viam os cortiços da Saúde, nem os barracos do Morro da Providência, nem os rostos sombrios dos que vivem sem postal, sem terno, sem chapéu. O progresso, meu caro, visto do alto, é uma senhora elegante que esconde os sapatos rasgados sob as saias.

Desci com o chapéu um pouco mais torto e o espírito mais cético. A Belle Époque, afinal, é bela apenas para quem a vê do mirante. No chão, continua-se pisando barro. E não há linho branco que resista.


● Imagem: Affonso, José dos Santos. Alto do Corcovado com o Mirante Chapéu do Sol, 1918. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Pedacinhos do céu" de Waldir Azevedo. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/Z7ZLAONdP2g?si=L1vIxZVaK69-54dm


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Muito obrigado, com apreço.

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