Série crônicas: O Rio como ele era! Um cronista diante dos Lusíadas e de sua roupa de linho gasto
Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
Um cronista diante dos Lusíadas e de sua roupa de linho gasto
por um espírito ligeiramente machadiano
Logo pela manhã em 1887 — que não foi das mais brilhantes, pois minha cabeça latejava como os sinos da Glória em dia de procissão — recebi uma mensagem telegráfica de um formalismo tão erudito que temi tratar-se de cobrança judicial. Mas não: era um convite. Um convite! Para que este relés cronista comparecesse ao nobilíssimo Real Gabinete Português de Leitura. Título pomposo, esse. Achei que o próprio Camões havia redigido o telegrama.
Não possuía eu roupa fina — nem mesmo roupa lavada, diga-se — para tamanha empreitada. Mas a vaidade é o pecado predileto dos pobres de espírito e dos literatos de meia tinta, e lá fui eu, saindo da Glória, onde reinava a paz dos gatos de telhado e das viúvas discretas, rumo ao burburinho do centro.
Por ironia do destino, ou escárnio do Real Gabinete, ele se situa na Rua Luís de Camões. O grande poeta! A língua portuguesa, essa senhora que ora nos consola, ora nos embaraça, deve muito ao gajo. Muito mesmo. Tive um professor que dizia que sem Camões a língua seria muda — e talvez feliz.
Cheguei ao edifício. Um monumento em estilo manuelino, recém-inaugurado. Lindo, opulento, imponente, como uma sogra com dote. Fui logo apresentado, não à rainha da Inglaterra (o que teria me causado menos tremor), mas a uma edição in-fólio de “Os Lusíadas”, datada de 1572. Ah, senhores! Que maravilha! O papel amarelado como a velhice de um monge, a encadernação luxuosa como amante de barão.
Quis folhear o livro. Quis cheirá-lo, beijá-lo, tê-lo como quem ama em segredo. Mas não. “Somente para exposição”, disse o bibliotecário, com a impassibilidade de um funcionário público às vésperas da aposentadoria. E eu, como Camões ao naufragar, me vi à deriva de meu desejo.
Pensei nos fundadores da casa, esses nobres emigrantes portugueses que, quinze anos após a Independência, resolveram ilustrar os espíritos da colônia... perdão, da ex-colônia. Eis aí o verdadeiro patriotismo: importar cultura com sotaque.
Saí de lá sem tocar no livro, mas com o ego polido. E a camisa, amarrotada.
● Imagem: Ferrez, Marc. Real Gabinete Português de Leitura, na rua Luis de Camões Adireita os fundos da Escola Politécnica, atual IFCS/UFRJ, 1887 circa Rio de Janeiro, Centro, RJ, Brasil/Instituto Moreira Salles
● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Murmurando", com Jacob do Bandolim. A música ilustra essa crônica:
https://youtu.be/xlqoZjJQei0?si=12dx9QNDW0KPKq2h
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