A Lei Bill Aberdeen (1845) e a Luta Contra o Tráfico Negreiro no Brasil: Conjuntura Política, Econômica e Social

Negros no fundo do porão por Johann Moritz Rugendas, 1835


Introdução

No cenário turbulento do século XIX, o Brasil se via entre os anseios de modernização e os grilhões de uma economia baseada na escravidão. A promulgação da Lei Bill Aberdeen, em 1845, pelo Parlamento Britânico, representou um marco decisivo na tentativa de suprimir o tráfico transatlântico de escravos, especialmente em relação ao Brasil — último grande destino de africanos escravizados nas Américas. Mais do que uma legislação isolada, a Bill Aberdeen refletia o contexto geopolítico internacional, as pressões humanitárias do abolicionismo britânico, os interesses econômicos do Império e os desafios de uma monarquia escravocrata tentando manter sua soberania.

A seguir, analisaremos detalhadamente os aspectos políticos, econômicos e sociais que cercaram a promulgação e os efeitos da Lei Bill Aberdeen, situando o Brasil no centro de uma crise que envolvia soberania nacional, dependência econômica, diplomacia e o persistente sistema escravista.




1. O Brasil no século XIX: uma nação escravista em meio à pressão internacional

1.1 Independência e continuidade da escravidão

O Brasil conquistou sua independência em 1822, rompendo com Portugal, mas mantendo muitos elementos da ordem colonial. Entre eles, o mais crucial era o sistema escravista. Diferente de outras nações latino-americanas que, após suas independências, aboliram gradualmente a escravidão, o Brasil aprofundou sua dependência da mão de obra escrava.

A economia brasileira — sobretudo nas regiões do Vale do Paraíba, Recôncavo Baiano e, posteriormente, no Oeste Paulista — estava intrinsecamente ligada ao trabalho escravizado. A produção de açúcar, algodão e, mais tardiamente, o café, não seria viável sem a presença maciça de africanos traficados.

1.2 O acordo de 1826 com a Inglaterra

Desde o início do século XIX, a Inglaterra vinha liderando uma campanha internacional contra o tráfico negreiro. Em 1807, aboliu o comércio de escravos e, em 1833, a escravidão em suas colônias. Buscando expandir seus ideais e interesses comerciais, pressionou nações como Portugal, Espanha e Brasil a seguir o mesmo caminho.

Em 1826, o Império brasileiro firmou com a Inglaterra um tratado bilateral em que se comprometia a extinguir o tráfico transatlântico em até três anos. Em resposta, promulgou-se a Lei de 7 de novembro de 1831, que declarava livres todos os africanos introduzidos no país após aquela data.

Contudo, essa lei foi deliberadamente ignorada. Sem aparato de fiscalização, sem mecanismos jurídicos e sob a complacência das elites, ela se tornou conhecida como a "lei para inglês ver". O tráfico não apenas continuou, como se intensificou, com a internalização de rotas clandestinas e a corrupção de autoridades. Segundo o historiador Leslie Bethell:

Em 1845, Lorde Aberdeen tinha-se sentido compelido a solicitar autorização para adotar, contra o comércio de escravos, o tipo de medidas arrogantes mais prontamente associadas com o nome de Lorde Palmerston. Ele mostrara, entretanto, uma preocupação muito maior do que o seu predecessor com, pelo menos, uma aparência de legalidade: ao instruir os navios de guerra britanicos a capturarem todos os navios brasileiros que estivessem praticando o comércio de escravos e os tribunais marítimos britânicos a julgá-los, o Governo britânico, argumentava-se, estava apenas exercendo seus direitos assegurados por tratado. E como Peel tinha-se esforçado por explicar à Câmara dos Comuns, era "a medida mais suave a que (o governo britânico) podia recorrer": deliberadamente, ele não estava pedindo ao Parlamento que desse a tribunais britanicos poderes para punir súditos brasileiros que praticassem o comércio de escravos, como tinha todo direito de fazer, de conformidade com o artigo 1 do tratado de 1826. Ademais, a decisão de apresentar o projeto Brasil (Comércio de Escravos) tinha sido tomada "com pesar e só em última necessidade". Por ocasião da aprovação do projeto, Aberdeen ofereceu revogá-lo quando o comércio de escravos tivesse finalmente cessado ou quando o governo brasileiro assinasse um tratado contra aquele comércio, aceitável para a Grã-Bretanha.

Quando, em março de 1845, o Governo brasileiro declarara sua disposição de entrar em negociações sobre um novo tratado contra o comércio de escravos, ele o tinha feito acreditando que, ao pôr fim ao tratado sobre direito de busca de 1817, tinha tomado a iniciativa diplomática e se colocado numa situação forte para ditar os seus termos: o Governo britânico teria agora de aceitar as propostas de tratado do Brasil, raciocinava, ou então abandonar inteiramente os seus esforços para suprimir o comércio brasileiro de escravos. Ele perceberia, entretanto, o próprio erro e, em 25 de julho, e de novo em 5 de agosto, José Marques Lisboa, o ministro brasileiro em Londres, viu-se tentando evitar a passagem do projeto de Lorde Aberdeen, advertindo-o de que ele destruiria qualquer possibilidade de os dois governos chegarem a acordo sobre um novo tratado satisfatório para ambas as partes: Na segunda ocasião ele se tinha mesmo oferecido para tentar persuadir o seu Governo a consentir que o tratado de 1817 continuas se em vigor até que fosse negociado um que o substituisse, desde que o Governo britânico abandonasse o seu plano de atribuir aos tribunais marítimos britânicos jurisdição sobre navios brasileiros." Uma vez que o projeto tinha se tornado lei e a Grã-Bretanha, portanto, assegurara que a iniciativa em qualquer futura negociação de tratado seria sua Brasil teria de sofrer a lei de Lorde Aberdeen ou, como Portugal em 1842, aceitar um tratado contra o comércio de escravos ditado pela Grã-Bretanha, Aberdeen sugeriu a Lisboa que, se o Governo brasileiro assinasse um acordo restabelecendo tratado de 1817 como ele tinha funcionado na prática antes de 13 de março, enquanto se negociava um novo tratado semelhante àqueles firmados pela Espanha em 1835 e Portugal em 1842, ele seria ratificado em seguida, sem espe rar a nova sessão do Parlamento, o Governo britânico recomendaria imediatamente e "com o maior prazer", por decreto real, que a jurisdição sobre os navios de escravos brasileiros capturados fosse transferida dos tribunais marítimos britânicos de volta para os de comissões mistas. Aberdeen avisou Hamilton Hamilton, no Rio de Janeiro, que o Governo britânico estava ansioso por chegar a a uma rápida solução naque- las linhas. Advertiu-o, porém, de que "não se deveria de nenhuma for- ma admitir, quer nos artigos (do acordo)... quer na negociação dos mesmos, qualquer coisa que pudesse afetar em alguma medida o direito que o Governo de Sua Majestade tinha afirmado ou a prática que os navi- os de patrulha de Sua Majestade e os representantes britânicos nas comissões mistas tinham observado no trato de embarcações brasileiras equipadas para o comércio de escravos de que elas estavam sujeitas, de acordo com o tratado de 1826, a apreensão e confisco". E caso O Governo brasileiro renove o tratado de 1817 apenas para novamente denunciá-lo antes do fim das negociações, ou deixe de cumprir os compromissos assumidos no novo tratado, "Sua Majestade", escreveu Aberdeen, "estará naturalmente livre para reverter aos direitos a Ela assegurados pelo artigo 1 do tratado de 1826".

No fim de junho, Hamilton Hamilton, o ministro britânico no Rio de Janeiro, tinha dado os passos necessários para preparar o Governo brasileiro para o advento do projeto de Lorde Aberdeen.


2. A conjuntura britânica: interesses humanitários e econômicos

2.1 A cruzada abolicionista do Império Britânico

A Inglaterra do século XIX era, simultaneamente, a maior potência econômica mundial e a principal força diplomática do movimento abolicionista internacional. O Parlamento britânico estava sob pressão constante de grupos religiosos, filantrópicos e de setores da opinião pública que viam a escravidão como uma abominação moral e cristã.

A campanha abolicionista britânica tinha como alicerce três pilares:

● A moral cristã e humanitária;

● O interesse econômico, substituindo o trabalho escravo por formas "livres" de trabalho assalariado;

● O controle geopolítico sobre rotas comerciais e marítimas.

2.2 Interesses econômicos britânicos na América do Sul

Além do discurso moral, havia interesses pragmáticos. Com a Revolução Industrial em pleno curso, a Inglaterra precisava de mercados consumidores e fornecedores de matérias-primas. Interesses comerciais exigiam a construção de uma rede internacional baseada no "livre comércio", o que incluía o fim do tráfico negreiro — não por altruísmo, mas para reduzir a concorrência de nações escravistas e garantir a hegemonia dos seus produtos.

Nesse sentido, o Brasil representava uma contradição. Era parceiro comercial relevante, sobretudo nas exportações de açúcar e café, mas insistia em manter o tráfico. A diplomacia britânica oscilava entre a condescendência e a imposição de medidas coercitivas.


3. A promulgação da Lei Bill Aberdeen (1845)

3.1 O conteúdo da lei

Diante do fracasso das negociações e da contínua inobservância do acordo de 1826 e da Lei de 1831, o Parlamento Britânico aprovou, em 1845, a Slave Trade Suppression Act, conhecida como Lei Bill Aberdeen (nome do Ministro das Relações Exteriores britânico, George Hamilton-Gordon, 4º Conde de Aberdeen).

A lei concedia à Marinha Real Britânica o poder de abordar, apreender e julgar embarcações suspeitas de tráfico negreiro, inclusive aquelas com bandeira brasileira e em águas jurisdicionais do Brasil. Seus comandantes poderiam ser processados por pirataria, um crime de natureza internacional.

3.2 A reação brasileira

A lei causou indignação imediata entre as elites políticas e econômicas brasileiras. O Império a considerou uma violação de sua soberania nacional. Editorialistas, senadores e diplomatas protestaram veementemente. A imprensa brasileira qualificou a lei como um “ultraje imperialista”. O sentimento anti-britânico se intensificou.

A tensão chegou ao auge com episódios como o ataque de um forte brasileiro a uma embarcação britânica, quase provocando uma guerra. As relações entre os dois países tornaram-se instáveis, com ameaças mútuas e constantes notas diplomáticas.

No entanto, a elite brasileira estava dividida: enquanto setores escravistas rejeitavam qualquer interferência britânica, outras correntes, mais liberais e progressistas, começavam a reconhecer a inviabilidade do tráfico e da própria escravidão no longo prazo. De acordo com o historiador Alessandro Reis:

A imprensa não se furtava em noticiar sobre as pressões inglesas e sua temida lei antitráfico. O tratamento sobre esse assunto não era diferente daquele que ocorria no parlamento, muita ira e rancor quanto a desmedida interferência na soberania nacional.

Um folheto de 1863, publicado pela Typographia Laemmert no Rio de Janeiro, portanto dezoito anos depois de entrar em vigor o Bill Aberdeen, chamava a atenção pela forma ácida com que se protestava contra a Inglaterra: 

O que é esse bill não o diremos: é uma história vergonhosa e ingloriosa para nós, mil vezes ainda vergonhosa e infame para a Inglaterra, que, como asqueroso vampiro vive do sangue alheio [...]

Esta forma dura e ácida de reclamar era um reflexo do que se entendia por condição da soberania, mas não foi só isso. O eco da interferência inglesa na soberania nacional prosperou ainda por muito tempo. Outra questão primordial para essa agitação na imprensa era a ingerência dos ingleses nos rumos econômicos que a lavoura brasileira produzia. As elites agrárias, no entanto, não estavam dispostas a admitir qualquer intromissão, muito menos que os seus interesses fossem subjugados. A tradição dessa elite consistia em conduzir os seus negócios de acordo com os proveitos que lhe eram convenientes passando pela política imperial e a imprensa.            

4. Impactos da Lei Bill Aberdeen na conjuntura interna brasileira

4.1 A intensificação da repressão ao tráfico

A atuação da Marinha Britânica no Atlântico Sul foi efetiva. Entre 1845 e 1850, centenas de navios negreiros foram interceptados, muitos destruídos, milhares de africanos libertados — ao menos em teoria — e comerciantes brasileiros presos ou mortos.

O custo da repressão — tanto financeiro quanto político — foi altíssimo. O tráfico tornou-se mais arriscado, caro e clandestino. O número de escravos traficados caiu vertiginosamente nos anos seguintes. Mesmo assim, o tráfico ilegal ainda persistiu até 1850, o que levou o Brasil a tomar medidas internas mais contundentes.

4.2 A promulgação da Lei Eusébio de Queirós (1850)

A Lei Eusébio de Queirós, de 4 de setembro de 1850, representou um marco legal na história do Brasil. Ela finalmente deu fim oficial ao tráfico de africanos para o país. Seu autor, Eusébio de Queirós, era Ministro da Justiça e ex-Chefe de Polícia do Rio de Janeiro. Ao contrário da lei de 1831, ela contou com aparato jurídico, policial e logístico para ser aplicada.

A nova lei não se deu unicamente por influência britânica. Internamente, havia uma mudança de percepção. O tráfico estava se tornando economicamente inviável, e os grandes cafeicultores do Oeste Paulista já haviam consolidado suas bases com a mão de obra disponível. Além disso, crescia o interesse em estimular a imigração europeia como alternativa "branca" ao trabalho escravo.


5. Os desdobramentos econômicos: escravidão, café e a transição para o trabalho livre

5.1 O auge da economia cafeeira

Com a diminuição do tráfico, os escravos africanos tornaram-se mais escassos e valorizados. Muitos foram deslocados das regiões açucareiras nordestinas para o Sudeste, sobretudo para o Oeste Paulista, onde se expandia a cafeicultura. Essa redistribuição interna de mão de obra sustentou a escravidão por mais quatro décadas.

O café tornou-se o principal produto de exportação do Brasil. São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais despontavam como centros econômicos, e uma nova elite — os barões do café — passou a influenciar diretamente as decisões do Império.

5.2 Imigração e transição para o trabalho assalariado

A partir de 1850, o Império passou a incentivar a imigração europeia, especialmente de italianos, suíços e alemães, como substituição gradual à mão de obra escrava. O sistema de colonato, porém, foi marcado por abusos, exploração e dificuldades de adaptação dos imigrantes.

Ainda assim, esse processo indicava um lento, mas contínuo movimento de transição do trabalho escravo para formas "livres", dentro de um capitalismo agrário em formação.

Partida para a colheita do café no Vale do Paraíba em 1885 por Marc Ferrez. Instituto Moreira Salles 


6. Impactos sociais e culturais: escravidão, resistência e abolicionismo

6.1 A experiência dos africanos libertos

Os africanos libertados pela atuação da Marinha Britânica eram, muitas vezes, recolhidos para colônias agrícolas, as chamadas "colônias de libertos". Na prática, muitos acabavam sendo explorados por fazendeiros ou reincorporados ao sistema escravista, sob disfarces legais. Outros seguiam marginalizados nas cidades, compondo os estratos mais pobres da sociedade.

A “libertação” oferecida pela Bill Aberdeen era, muitas vezes, uma mudança de forma, e não de conteúdo.

6.2 Resistência negra e redes de solidariedade

Mesmo sob escravidão ou sob vigilância, africanos e seus descendentes formavam redes de apoio, solidariedade e resistência. Quilombos, irmandades religiosas, festas populares e práticas culturais como o candomblé e a capoeira preservavam identidades africanas e sustentavam a coesão dos grupos oprimidos.

A luta contra a escravidão não era apenas externa (britânica) ou parlamentar (abolicionistas liberais), mas também interna, protagonizada por homens e mulheres negros, organizados ou não, com estratégias diversas.


7. A Lei Bill Aberdeen como parte de um processo maior

7.1 Diplomacia e dependência

A crise gerada pela Bill Aberdeen revelou a vulnerabilidade diplomática do Brasil diante da Inglaterra. A dependência econômica e comercial era tamanha que o Império não pôde sustentar uma postura de enfrentamento por muito tempo.

A atuação britânica, ainda que autoritária, impulsionou uma série de transformações internas, desde reformas legais até mudanças na estrutura produtiva.

7.2 O caminho até a Lei Áurea

A proibição do tráfico em 1850 foi apenas o primeiro passo. Nas décadas seguintes, seguiram-se outras leis importantes:

Lei do Ventre Livre (1871): libertava os filhos de escravizadas nascidos após a promulgação.

Lei dos Sexagenários (1885): libertava escravos com mais de 60 anos.

Lei Áurea (1888): finalmente aboliu a escravidão no Brasil.

Esse processo, contudo, foi lento e permeado de contradições. A abolição ocorreu sem indenização aos ex-escravizados, sem políticas de inserção social e sob o silêncio de uma elite que apenas adaptou sua exploração.


Conclusão

A Lei Bill Aberdeen, promulgada em 1845 pelo Parlamento Britânico, foi uma medida unilateral, autoritária e profundamente polêmica. Contudo, desempenhou papel decisivo no colapso do tráfico transatlântico de escravos para o Brasil. Sua importância não reside apenas na repressão naval que promoveu, mas nos desdobramentos políticos, econômicos e sociais que provocou.

Ela escancarou a hipocrisia da Lei de 1831, forçou o Brasil a enfrentar suas contradições internas, evidenciou a submissão diplomática ao Império Britânico e impulsionou reformas que, décadas mais tarde, culminariam na abolição.

A Bill Aberdeen foi, portanto, mais do que uma lei: foi um divisor de águas na história da escravidão no Brasil, um exemplo de como pressões externas e internas podem se entrelaçar e produzir mudanças profundas. Seu legado permanece vivo na memória da luta pela liberdade e pela justiça social, lembrando-nos de que o combate à escravidão foi um processo longo, árduo e ainda incompleto nos efeitos sociais herdados.


Indicação de leituras: 

● Em Costas Negras: Uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro por Manolo Florentino

● Da Senzala à Colônia por Emília Viotti da Costa

● A Abolição do Comércio Brasileiro de Escravos: A Grã-Bretanha, o Brasil e a Questão do comércio de escravos, 1807-1869 por Leslie Bethell

● Preeminência Inglesa no Brasil por Alan K. Manchester

Veja mais em:

https://youtu.be/yfTckd7ee8k?si=WTA-SwLX2QH31f4Q


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