Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Um coração reprovado

Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!



Um coração reprovado

Por um flâneur sem currículo

Despretensiosamente — palavra que serve como véu para toda espécie de despropósito — eu passava, todas as tardes, pela Rua Mariz e Barros, na pacata Tijuca. Digo “despretensiosamente” como quem tropeça de propósito no mesmo paralelepípedo por cem dias consecutivos. Meu destino? A calçada em frente ao Instituto de Educação do Rio de Janeiro, a antiga Escola Normal da Corte, criada com solenidade em 1880 para domesticar a pedagogia e, com sorte, a juventude feminina.

Iam elas, as normalistas, desfilando num balé de decência. Blusas alvíssimas como a moral que professavam, saias azul-marinho do comprimento regulamentar, sapatos fechados e olhos abertos — menos para mim. Ah, que formosas encarnações do civismo e da gramática! Aquelas moças eram a própria República em formação... e eu, o Império decadente tentando manter a pose.

Sim, meu caro leitor, havia ali mais que flanar: havia o risco calculado do flerte. Passava como quem busca sombra, mas só encontrava indiferença. O máximo que obtive foi um “boa tarde” proferido com a frieza de uma chamada oral. Passei tantas vezes que um dia um vendedor de pipocas perguntou se eu era o porteiro da escola. Outro jurava que eu anotava ponto.

Mas havia método na minha tolice. A cada passada fingida, um olhar de soslaio, um meneio de cabeça — inúteis, como tentar ensinar álgebra a um coqueiro. Eu, poeta de esquina, tentava conquistar uma pedagogia que já vinha com régua e compasso. Elas liam Pestalozzi, e eu, mal sabia ordenar os próprios sentimentos.

Tentei charme, tentei postura, tentei até andar com um livro debaixo do braço — Machado, é claro — mas nenhuma normalista se sentiu anormal o suficiente para ceder ao meu feitiço de verbos mal conjugados.

E assim, enquanto elas preparavam-se para ensinar o futuro da nação, eu era uma aula viva sobre fracasso amoroso com ênfase em ridículo. Descobri, por fim, que não há pedagogia que ensine a arte de ser correspondido — sobretudo quando o candidato a Romeu veste-se como um cronista do século passado e fala mais consigo mesmo que com o mundo.

Reprovei. Mas reprovei com estilo. O que, convenhamos, já é uma nota acima da média.


● Imagem: Normalistas no Instituto de Educação, Rio de Janeiro, sem data. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.

● Clique no link abaixo e ouça a canção "Normalista" de Benedito Lacerda e David Nasser na voz inconfundível do Nelson Gonçalves. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/pe543Dq-om4?si=T1HiFb2-9Q9R3iwo


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Muito obrigado, com apreço.
 

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