Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Entre o rosário e o pandeiro
Entre o rosário e o pandeiro
Era o ano de 1946, e a República, sempre tão afeita a mudar de roupa sem trocar de corpo, vestia um novo paletó político. O general Dutra, homem sério — sério como uma missa de defunto — assumia a presidência. Ao seu lado, a excelsa primeira-dama, dona Carmela Dutra, católica de missa e rosário, pregava moralidade com tal fervor que, se lhe dessem um sermão no púlpito e um crucifixo, faria inveja a qualquer bispo.
Eu, que nunca tive vocação para sacristão nem apetite para dogmas, fui, entretanto, agraciado com um convite mais mundano: um samba em Madureira. E não era qualquer batuque de esquina! Cochichavam que Orlando Silva, o cantor das multidões, e Aracy de Almeida, a inigualável Araca do Encantado, dariam canja na roda da Serrinha.
Levantei-me cedo. Não que o samba começasse com o sol, mas atrasar-se para um evento desses é como chamar o padre para a cervejada e pedir-lhe que espere na calçada. Pus meu melhor chapéu — o único — e segui para a Central do Brasil. Ramal de Deodoro, estação de Madureira: destino traçado.
No caminho, pensava eu no contraste. Lá no Catete, o general e a primeira-dama alinhavam o país nos trilhos da moral e dos bons costumes; cá na Zona Norte, a moralidade estava nos versos de Noel, no pandeiro que batia como coração novo, e no tamborim que convidava à vida.
Ao chegar, fui recebido pelo som que não pede licença para entrar na alma. O cavaquinho soluçava, a cuíca gemia suas confidências, e as vozes se misturavam como se o mundo inteiro coubesse naquela batucada. Orlando Silva chegou, saudado como rei; Aracy, com aquele sorriso de quem sabia que ironia também se canta.
Enquanto a noite se adiantava e a cerveja se atrasava — culpa de um garçom mais devoto à conversa que ao serviço —, senti que Madureira não estava nem aí para o moralismo do Catete. Ali, o pecado era dançar pouco, e a penitência, não saber a letra inteira.
Voltei para casa com o corpo leve e a certeza de que, no Brasil de 1946, havia dois governos: o de dona Carmela, zelando pela alma; e o de Madureira, zelando pela alegria. Confesso: votei no segundo.
● Imagem: Coletivos estacionados próximos à Estacão ferroviária de Madureiro, 13 dejulho de 1946. Arquivo Nacional
● Clique no link abaixo e ouça a canção "Alegria" na voz de Orlando Silva. A música ilustra essa crônica:
https://youtu.be/HXgTzWMrWUc?si=2m7HTNHvmn81QT-P
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