Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Entre o rosário e o pandeiro


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


Entre o rosário e o pandeiro

Era o ano de 1946, e a República, sempre tão afeita a mudar de roupa sem trocar de corpo, vestia um novo paletó político. O general Dutra, homem sério — sério como uma missa de defunto — assumia a presidência. Ao seu lado, a excelsa primeira-dama, dona Carmela Dutra, católica de missa e rosário, pregava moralidade com tal fervor que, se lhe dessem um sermão no púlpito e um crucifixo, faria inveja a qualquer bispo.

Eu, que nunca tive vocação para sacristão nem apetite para dogmas, fui, entretanto, agraciado com um convite mais mundano: um samba em Madureira. E não era qualquer batuque de esquina! Cochichavam que Orlando Silva, o cantor das multidões, e Aracy de Almeida, a inigualável Araca do Encantado, dariam canja na roda da Serrinha.

Levantei-me cedo. Não que o samba começasse com o sol, mas atrasar-se para um evento desses é como chamar o padre para a cervejada e pedir-lhe que espere na calçada. Pus meu melhor chapéu — o único — e segui para a Central do Brasil. Ramal de Deodoro, estação de Madureira: destino traçado.

No caminho, pensava eu no contraste. Lá no Catete, o general e a primeira-dama alinhavam o país nos trilhos da moral e dos bons costumes; cá na Zona Norte, a moralidade estava nos versos de Noel, no pandeiro que batia como coração novo, e no tamborim que convidava à vida.

Ao chegar, fui recebido pelo som que não pede licença para entrar na alma. O cavaquinho soluçava, a cuíca gemia suas confidências, e as vozes se misturavam como se o mundo inteiro coubesse naquela batucada. Orlando Silva chegou, saudado como rei; Aracy, com aquele sorriso de quem sabia que ironia também se canta.

Enquanto a noite se adiantava e a cerveja se atrasava — culpa de um garçom mais devoto à conversa que ao serviço —, senti que Madureira não estava nem aí para o moralismo do Catete. Ali, o pecado era dançar pouco, e a penitência, não saber a letra inteira.

Voltei para casa com o corpo leve e a certeza de que, no Brasil de 1946, havia dois governos: o de dona Carmela, zelando pela alma; e o de Madureira, zelando pela alegria. Confesso: votei no segundo.


● Imagem: Coletivos estacionados próximos à Estacão ferroviária de Madureiro, 13 dejulho de 1946. Arquivo Nacional

● Clique no link abaixo e ouça a canção "Alegria" na voz de Orlando Silva. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/HXgTzWMrWUc?si=2m7HTNHvmn81QT-P


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Muito obrigado, com apreço.


 

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