Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O mar de pedra!


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


O mar de pedra

Copacabana, 1955. Eis o espetáculo mais grandioso que a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ousou encenar: um mar de pedras portuguesas a rivalizar com o mar de água salgada. Digo rivalizar, porque o calcadão — essa invenção de engenheiros que se crêem poetas — já não se contentava em ser chão. Era preciso ondular, serpentear, fingir-se oceano, como se a própria calçada tivesse ciúmes das águas.

E não pense o leitor que exagero. Perceba bem, o Atlântico resfolegando como sempre, infinito e salgado, os prédios erguidos em série, todos retos, severos, vigilantes, como se competissem entre si para ver quem faria mais sombra. Ao centro, o calcadão — esta língua de pedra que se quer poesia. O Rio, generoso, oferece duas praias ao passante: uma de espuma, outra de cimento. O cidadão escolhe se deseja molhar os pés ou apenas torcê-los numa das curvas do mosaico.

Ora, há nisso um triunfo da modernidade: o povo pode sentir-se marítimo sem molhar a barra das calças. Basta caminhar sobre as ondulações e já está imerso no oceano… simbólico. E que oceano! Sempre limpo, nunca revolto, não engole banhistas distraídos nem serve de cama a peixes mortos. Há, no máximo, um chiclete colado, um cigarro esmagado, e eis o drama náutico da calçada.

A praia, em 1955, ainda guarda certo pudor. Não é a passarela de biquínis ousados, nem o picadeiro de celebridades de ocasião. É apenas o cenário de uma cidade que insiste em se mostrar civilizada: prédios altos, calçada artística, um mar que se oferece como pano de fundo. O carioca, com seu espírito filosófico, passeia nesse teatro e imagina-se em Lisboa, quem sabe Veneza, mas sempre com os pés no Brasil.

O curioso, porém, é que o calcadão parece zombar do próprio mar. A cada onda de pedra, sussurra: “Vês? Posso imitar-te e não me desgasto.” O oceano responde com ressaca, mas é inútil: as pedras permanecem. A ironia maior é que, em Copacabana, o mar já não está só do lado de lá; está também sob os sapatos.

Assim, em 1955, o Rio inventou a praia duplicada. E o passante, sem saber, tornou-se marinheiro de pedra.


● Imagem: José Medeiros. Rio de Janeiro, Copacabana, Avenida Atlântica, 1955. Instituto Moreira Salles.

● Clique no link abaixo e ouça a canção "Copacabana" na voz inconfundível de Sarah Vaughan. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/YBhy5IM6nJM?si=9ZoZ0xPZJAM2CBdC


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Muito obrigado, com apreço.





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