Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! A moça, a garrafa e a eternidade


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


A moça, a garrafa e a eternidade

Se alguém tivesse o engenho de escrever a história do Rio de Janeiro apenas pelas garrafas de vidro deixadas nas mesas de ferro, teria já uma crônica mais honesta do que todos os discursos oficiais reunidos. Repare o leitor nesta cena da década de 1950, na Praia Vermelha, onde a natureza se esmera em montanhas e mares, e a civilização retribui com cadeiras de madeira que rangem como mariscos na rocha.

Eis uma jovem, posta à beira do Atlântico, segurando uma garrafa. Não se sabe se contempla o mar ou se espera que a espuma lhe devolva algum Ulisses perdido. A garrafa, porém, reina absoluta: negra, opaca, promissora. O que importa o Pão de Açúcar lá atrás, se diante dela se ergue o império da cevada? É um caso evidente de geopolítica líquida.

As cadeiras, dispostas em círculo irregular, parecem uma assembleia de ausentes. Cada uma espera um traseiro que nunca veio, como se a cidade tivesse prometido público e entregado silêncio. Talvez simbolizem os eleitores cariocas: sempre dispostos, raramente ocupados. A mesa, essa, faz as vezes de altar: nela repousa o sacramento civilizatório, uma garrafa da indústria nacional, verdadeira ponte entre a solidão e a sociabilidade.

Notem, também, a indiferença da praia ao fundo. Banham-se corpos, riem crianças, caminham moços. Todos parecem ignorar que, a poucos metros, uma senhora do destino se dedica à mais filosófica das ocupações: beber sozinha em público. É a glória da modernidade tropical — onde a liberdade se confunde com o tédio.

O vestido florido da jovem, contrastando com a aspereza do paredão e a rudeza da cadeira, é como um poema declamado em repartição pública: bonito, mas deslocado. Não é que falte companhia, é que sobra contemplação. A moça olha para o horizonte como quem consulta o futuro, e o futuro, cruel, devolve-lhe apenas ondas repetitivas.

Faz o Rio: entre montanhas sublimes e garrafas triviais, entre praias de postal e solidões discretas. A vida, senhores, não é feita dos que estão na água a nadar, mas dos que ficam à margem, bebendo e pensando. E talvez, quem sabe, seja mais sábio erguer um brinde à indiferença do mar do que atirar-se às suas ilusões de eternidade.


Imagem: José Medeiros. Rio de Janeiro, a cantora Dulce Nunes em lanchonete na Praia Vermelha, década de 1950. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça a canção "Você" na voz de Dalva de Oliveira, a "Rainha do Rádio". A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/3w4-PQrKGw4?si=UI2SeGHhc8JjNBlm


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