Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O tripé, a República e o rabo da porca
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
O tripé, a República e o rabo da porca
Não me venham falar de progresso em 1910, quando o maior espetáculo da República era o exercício contínuo de torcer o rabo da porca — metáfora tão nacional que deveria constar na bandeira. O Parlamento, em sua glória de mármore e poeira, era palco de um balé cômico: deputados que juravam salvar a pátria, enquanto ensaiavam, nos bastidores, os passos mais complexos da dança do interesse. Se alguém perguntasse pela moral, respondiam com um sorriso, como quem fala de uma senhora antiga, já aposentada e quase esquecida.
Mas eis que, nesse cenário de discursos vazios e indignações de ocasião, surge o verdadeiro estadista: o fotógrafo. Não é ironia, é fato. Enquanto nossos representantes torciam a verdade até ela gritar, ele erguia um tripé vacilante sobre a pedra e, com gesto sereno, domava a luz. Que coragem, meus senhores! Porque enfrentar a instabilidade de um tripé sobre o rochedo exige mais fibra que governar a República, onde o único risco é perder a próxima eleição — e mesmo isso se resolve com um aperto de mãos bem dado.
O fotógrafo não tinha tribuna, mas tinha objetivo (literal e figurado). Apontava sua máquina para Botafogo, para o Pão de Açúcar, para a Guanabara que, vista de cima, parecia mais honesta do que qualquer ata legislativa. Enquanto os homens do poder produziam discursos que o tempo se encarregaria de dissolver como açúcar em café requentado, ele produzia eternidade em papel fotográfico.
Eis o paradoxo delicioso: a República de 1910 prometia salvar o país, mas quem realmente o salvou foi a objetiva. Graças a ela, sabemos que havia montanhas firmes, marés constantes e uma cidade que, apesar dos homens públicos, ainda resistia.
No fim, entre um rabo de porca torcido e um tripé equilibrado, fico com o tripé. Ele ao menos sustentava algo que não caía no ridículo. No duelo entre a política e a fotografia, venceu a objetiva. Afinal, o verbo mente, mas a luz raramente.
Imagem: Augusto Malta. Rio de Janeiro, vista do Pão de Açúcar e Botafogo. Instituto Moreira Salles
● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Língua de preto" de Pixinguinha e Benedito Lacerda. A música ilustra essa crônica:
https://youtu.be/ydjPsvPSbsk?si=jGOlPHFIrxbUeDpJ
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