Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O Primo Florílio


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


O Primo Florílio

Caros e ilustres leitores deste cronista subversivo, devo confessar-lhes uma extravagância literária: comprei uma nova edição de O Primo Basílio. E não foi qualquer brochura impressa em papel de embrulho, não, senhor. Era uma edição de luxo, capa dura, dourada nas bordas, com cheiro de tinta tipográfica capaz de embriagar um bibliômano. Por isso, fui até o centro do Rio de Janeiro, à respeitável Livraria Garnier e adquirir tal preciosidade.

Ora, foi na minha romaria literária que, ao atravessar a confluência das Avenidas Passos e Marechal Floriano, percebi uma dessas ironias que só a geografia municipal é capaz de arquitetar. De um lado, Pereira Passos, o apóstolo do “bota abaixo” — homem que achava que a cidade era uma espécie de velho sótão que precisava ser esvaziado a marretadas. Do outro, Marechal Floriano Peixoto, o “Marechal de Ferro”, que acreditava que a política era como um jardim: as flores deviam ser cultivadas, mas as ervas daninhas arrancadas… a tiros, se necessário.

Ambos, reunidos no mesmo cruzamento, formavam, para este cronista, um dueto digno de opereta: imaginei Floriano, com seu bigode belicoso, dizendo a Passos:

— Bote abaixo tudo, meu caro! Mas bote abaixo com firmeza militar. Nada de martelo: use artilharia!

E Passos, cofiando o queixo:

— Pois sim, Marechal! Derrubamos prédios, praças, e se sobrar tempo, derrubamos até a paciência dos munícipes!

Pensei, então, que se o bom Eça de Queiroz passeasse por aqui, trocaria Lisboa pelo Rio e rebatizaria sua obra O Primo Florílio. Seria a história de um general que seduzia a cidade com decretos autoritários, enquanto um engenheiro urbano, cúmplice, destruía o cenário para melhor esconder os cadáveres políticos. Luísa, coitada, talvez não fosse enganada por Basílio, mas despejada por Passos — e Floriano, naturalmente, assinaria o mandado com a mesma pressa com que ordenava um fuzilamento.

E pensar que 1925 ainda nos deu a Coluna Prestes, marchando país adentro como um Basílio republicano, prometendo amor à Pátria, mas deixando atrás de si uma sucessão de ciúmes, intrigas e portas batidas. Afinal, seja no lar de Luísa ou na casa da República, sempre há um primo inconveniente.


●Imagem: Malta, Augusto. Avenida Passos na altura da Avenida Marechal Floriano, Centro, Rio de Janeiro, 1925. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Ainda me recordo" de Pixinguinha e Benedito Lacerda. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/w3rtLXtX8aM?si=uw06W4uIqCyaxNhj


● Se este conteúdo lhe foi útil ou o fez refletir, considere apoiar espontaneamente este espaço de História e Memória. Cada contribuição ajuda no desenvolvimento do blog. Chave PIX: oogrodahistoria@gmail.com

Muito obrigado, com apreço.

 

Comentários

Postagens mais visitadas