Análise do poema “Nosso Tempo”, de Carlos Drummond de Andrade



1. Contexto Histórico

1.1 O Pós-Segunda Guerra Mundial

Em 1945, quando A Rosa do Povo veio a público, o mundo acabava de sair da mais sangrenta guerra da história humana. A vitória sobre o nazifascismo não trouxe a paz eufórica que se esperava. Ao contrário, havia um clima de insegurança, desconfiança e rearranjo geopolítico. A Alemanha estava em ruínas, a Europa inteira em reconstrução, os Estados Unidos emergiam como potência global e a União Soviética expandia sua influência. Ao mesmo tempo, surgia o prenúncio da Guerra Fria, com a polarização ideológica entre capitalismo e socialismo.

No Brasil, o fim da guerra coincidiu com a queda da ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1937–1945). O país vivia o turbilhão da transição entre regimes, com esperanças democráticas misturadas a tensões sociais. Havia greves, reivindicações de trabalhadores, e uma crescente inquietação sobre o rumo da nação.

É nesse ambiente que Drummond escreve “Nosso Tempo”. O título já indica a intenção: não se trata de um poema pessoal ou intimista, mas de um retrato coletivo, histórico e político de uma era de fragmentação e desencanto.


2. Temas Principais

2.1 Fragmentação do Indivíduo

Logo nos primeiros versos — “Esse é tempo de partido / Tempo de homens partidos” — o poeta sintetiza a experiência de uma geração que se sente cindida, mutilada. A fragmentação não é apenas política (partidos, ideologias), mas também existencial: o indivíduo perde sua integridade, suas conexões, sua coesão interna.

Drummond evoca imagens perturbadoras como *m“mãos viajando sem braços” ou “obscenos gestos avulsos”. São metáforas da alienação: partes do corpo que se movem isoladas, sem unidade, sem consciência. É a ilustração da vida moderna sob a lógica industrial e capitalista, em que o homem deixa de ser sujeito para tornar-se peça solta de uma engrenagem.

Essa fragmentação também é espiritual. O sujeito poético sente que “tenho palavras em mim buscando canal / são roucas e duras”. As palavras perderam o sentido, mas ainda acumulam energia, prontas a explodir. A experiência moderna aparece como uma perda de referência, mas também como tensão latente, possibilidade de resistência.

2.2 Crítica ao Capitalismo

Poucos poemas de Drummond são tão explícitos em sua crítica ao sistema capitalista. Em um trecho crucial, ele escreve:

“O esplêndido negócio insinua-se no tráfego

Multidões que o cruzam não veem é sem cor e sem cheiro

Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul

Vem na areia, no telefone, na batalha de aviões

Toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.”


Aqui, o capitalismo é descrito como uma força onipresente, invisível, que infiltra-se em todas as dimensões da vida cotidiana: no transporte público, na comunicação, na guerra, na própria subjetividade. Mais que dominar a economia, ele coloniza a alma, transformando sentimentos, desejos e valores em mercadoria.

Drummond expõe o mecanismo da alienação: o indivíduo passa a imaginar liberdade e autonomia, mas no fundo está reduzido a “último servo do negócio”. A crítica lembra a análise marxista da reificação e da exploração, mas ganha um tom poético e visceral que transcende a teoria.

2.3 Crise de Valores

Outro aspecto recorrente é a sensação de perda dos símbolos tradicionais. Em “as leis não bastam, os lírios não nascem”, Drummond sugere que nem a ordem legal nem a beleza poética conseguem dar conta da realidade histórica.

Os lírios — flores que simbolizam pureza e renovação — não brotam mais. A cidade está impregnada de “tumulto”, de desordem, de cinismo. As instituições parecem falidas, incapazes de sustentar uma noção de verdade, justiça ou beleza.

Essa crise de valores conecta-se diretamente ao trauma da guerra, ao descrédito da civilização ocidental que, após séculos de progresso científico, produziu Auschwitz, Hiroshima e Nagasaki. O poema traduz esse mal-estar cultural em imagens de devastação moral.


3. Imagens e Símbolos

3.1 “Tempo de partido, tempo de homens partidos”

Esse verso é um dos mais célebres da poesia brasileira do século XX. Ele condensa em forma lapidar a experiência da modernidade política e existencial. O jogo semântico entre “partido” (como organização política) e “partido” (como cindido, quebrado) sugere que a política, em vez de unir, reforça as fraturas.

3.2 “Mãos viajando sem braços”

Trata-se de uma das imagens mais fortes da desintegração. Uma mão que viaja sem braço não tem força, direção ou sentido. É gesto avulso, obsceno, desprovido de sujeito. É também metáfora da alienação do trabalho: mãos que produzem, mas sem vínculo com a totalidade do corpo humano.

3.3 “Sucedâneo da estrela nas mãos”

Drummond critica os simulacros que substituem a verdadeira luz (a estrela). Em vez de transcendência, de ideal, os homens se contentam com sucedâneos banais: unhas, anéis, cigarros, lanternas. São símbolos de uma vida reduzida ao consumo, ao ornamento, à compensação superficial.

3.4 “Certas partes de nós como brilham!”

Apesar do tom sombrio, o poema não é totalmente desesperançado. Há ainda lampejos de humanidade: as unhas, os anéis, os cigarros podem ser vistos não apenas como sucedâneos, mas como vestígios de brilho em meio à escuridão. Drummond reconhece a persistência da vida, da pulsação, mesmo em condições adversas.


4. Mensagem e Relevância

4.1 Arte como Resistência

O poema afirma explicitamente que “o poeta declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista / e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas / promete ajudar a destruí-lo”.

Drummond concebe a poesia como instrumento de resistência política e ética. Não é a arma da violência, mas da palavra, do símbolo, da crítica. A arte aparece como uma forma de confrontar a alienação, de abrir canais de reflexão, de manter viva a chama da contestação.

4.2 Chamado à Reflexão

Mais do que denunciar, “Nosso Tempo” é um convite à consciência. Ele não oferece soluções fáceis, mas instiga o leitor a pensar: que tempo é esse em que vivemos? Que valores nos restam? O que fazemos com nossas palavras, nossos gestos, nossas escolhas?

4.3 Um Retrato Crítico

Embora escrito em 1945, o poema tem uma impressionante atualidade. A crítica à alienação do consumo, à falsificação das palavras pela imprensa, à manipulação da subjetividade, tudo isso ressoa intensamente no século XXI. Em meio às crises contemporâneas, “Nosso Tempo” permanece como um espelho incômodo, um retrato crítico de qualquer sociedade em que a humanidade se vê reduzida a engrenagem de sistemas desumanizadores.


5. Estrutura e Estilo

“Nosso Tempo” é um poema longo, dividido em oito seções (I a VIII). Essa estrutura confere-lhe um caráter quase de canto épico moderno, onde cada parte aborda uma dimensão da realidade: política, existencial, econômica, familiar, íntima.

O estilo é característico da fase madura de Drummond: versos livres, imagens fragmentadas, tom discursivo misturado a metáforas líricas. A linguagem é direta, quase prosaica em certos momentos, mas sempre carregada de densidade simbólica.

O poema não busca a harmonia, mas o desconforto. Sua forma fragmentada reflete exatamente a experiência que descreve: a fragmentação do homem moderno.


6. Conclusão

“Nosso Tempo”, publicado em A Rosa do Povo (1945), é um dos mais importantes poemas de Carlos Drummond de Andrade. Ele articula de forma magistral o contexto histórico do pós-guerra com temas universais da modernidade: fragmentação, alienação, crise de valores, crítica ao capitalismo.

As imagens drummondianas — homens partidos, mãos sem braços, sucedâneo da estrela — tornam-se metáforas inesquecíveis da experiência histórica do século XX. E sua mensagem, de denúncia e resistência, continua a interpelar os leitores de hoje.

Mais do que um poema de época, “Nosso Tempo” é uma meditação sobre a condição humana em tempos de crise, e sobre o papel da poesia como instrumento de crítica e transformação.


7. Diálogo com outros poemas de A Rosa do Povo

7.1 “A Flor e a Náusea”

Um dos poemas mais conhecidos do mesmo livro é A Flor e a Náusea, no qual Drummond afirma: “Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.”

Aqui, ao contrário do pessimismo quase absoluto de Nosso Tempo, há uma fresta de esperança. A flor simboliza a possibilidade de renovação, de beleza autêntica em meio ao caos da cidade.

Comparando os dois poemas, percebemos que Drummond não se limita à denúncia. Há em sua poesia um movimento dialético: de um lado, o diagnóstico sombrio da alienação capitalista; de outro, a insistência na resistência da vida, mesmo em gestos pequenos e quase invisíveis.

Em Nosso Tempo, essa fresta aparece em versos como “Certas partes de nós como brilham!”. Em A Flor e a Náusea, ela se transforma em símbolo mais explícito de esperança.

7.2 “Mãos Dadas”

Outro poema central é Mãos Dadas, que afirma: “Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros.”

Há aqui uma clara afinidade com Nosso Tempo: ambos rejeitam o escapismo e a indiferença. Drummond se coloca como testemunha crítica da realidade presente, comprometido com seu “tempo”.

Enquanto Nosso Tempo enfatiza a mutilação e a alienação, Mãos Dadas reforça a ideia de solidariedade. O gesto de dar as mãos é antídoto contra a fragmentação. Drummond não recusa o pessimismo, mas insiste em uma dimensão ética de comunhão e responsabilidade.


8. Influências Literárias e Filosóficas

8.1 Modernismo Brasileiro

Drummond pertence à segunda geração modernista. Diferente da fase inicial (1922–1930), marcada pela irreverência e pela redescoberta do Brasil, sua poesia nos anos 1940 torna-se mais reflexiva, social e política.

Nosso Tempo é exemplo da maturidade modernista: uso do verso livre, linguagem coloquial, crítica social, mas também profundidade filosófica.

8.2 Surrealismo e Fragmentação

As imagens de mãos soltas, corpos partidos, gestos obscenos remetem ao universo surrealista, que explorava a lógica do inconsciente e a desagregação da realidade.

No entanto, Drummond não adota o surrealismo de forma pura: ele incorpora suas técnicas para representar a alienação histórica. O irracional não é fuga, mas metáfora de um mundo efetivamente irracional após a guerra e sob o capitalismo.

8.3 Marxismo e Crítica Social

Drummond não foi um militante político formal, mas conviveu com intelectuais ligados ao marxismo e absorveu parte de sua crítica social.

O verso “Toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem” poderia ser lido como tradução poética da ideia marxista de mais-valia. A exploração deixa de ser apenas econômica e passa a atingir o íntimo, a subjetividade.

Assim, Drummond amplia a crítica marxista para uma dimensão existencial e estética.

8.4 Existencialismo

O clima de angústia, de perda de valores e de busca de sentido também aproxima Nosso Tempo do existencialismo, corrente que florescia nos anos 1940 com Sartre, Camus e outros.

Quando o poeta confessa: “Tenho palavras em mim buscando canal”, ecoa a tensão existencial entre a necessidade de expressão e a insuficiência da linguagem, entre a liberdade e o absurdo.


9. Recepção Crítica

9.1 Na Época da Publicação

Em 1945, A Rosa do Povo causou forte impacto. Era o livro mais volumoso de Drummond até então, reunindo 55 poemas, e marcava sua entrada definitiva no campo da poesia social.

A crítica da época reconheceu a força engajada da obra, embora alguns tenham estranhado o tom mais sombrio e fragmentado, distante da leveza de poetas anteriores.

9.2 Interpretações Posteriores

Críticos como Antonio Candido e Alfredo Bosi destacaram Nosso Tempo como um dos pontos culminantes da poesia de engajamento no Brasil.

Candido sublinhou a capacidade de Drummond de unir o íntimo e o coletivo: mesmo ao falar da fragmentação histórica, o poeta nunca perde a dimensão humana, concreta.

Bosi, por sua vez, viu no poema uma síntese da “consciência dilacerada” do século XX: uma poesia que não oculta o desastre, mas tampouco abdica da palavra como instrumento de luta.

9.3 Atualidade da Leitura

Hoje, quase 80 anos depois, o poema permanece atual. Em um mundo marcado por novas guerras, crises econômicas e alienação digital, as imagens de Drummond continuam a ressoar.

A crítica à colonização da subjetividade pelo capitalismo — “toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem” — parece antecipar debates contemporâneos sobre vigilância, algoritmos e mercantilização da vida.


10. Considerações Finais

Nosso Tempo é, portanto, um dos poemas mais poderosos de Carlos Drummond de Andrade e da literatura brasileira do século XX. Publicado em 1945, em A Rosa do Povo, ele articula crítica histórica, densidade existencial e força poética em um retrato devastador, mas também lúcido, de uma era marcada pela fragmentação e pela alienação.

O poema não é apenas denúncia: é também gesto de resistência. Ao afirmar que o poeta promete ajudar a destruir o mundo capitalista com suas palavras, Drummond reivindica a poesia como arma ética e estética.

Mesmo nos trechos mais sombrios, há lampejos de esperança — nas pequenas partes que brilham, na persistência da vida, na possibilidade de comunhão.

No fim, Nosso Tempo é mais que um retrato de 1945: é um espelho crítico para todos os tempos de crise. Sua mensagem continua a ecoar, convidando-nos a refletir sobre que mundo construímos, que valores sustentamos e qual o papel da arte em tempos de desumanização.


● Linha do Tempo – Nosso Tempo (Carlos Drummond de Andrade)


1918–1939 – Entre Guerras


* Crise econômica mundial (1929) e ascensão do fascismo na Europa.

* No Brasil, Revolução de 1930 leva Getúlio Vargas ao poder.

* Drummond publica Alguma Poesia (1930) e Sentimento do Mundo (1940), já demonstrando inquietações sociais.


1937–1945 – Estado Novo e Segunda Guerra Mundial

* 1937: Vargas instaura ditadura do Estado Novo no Brasil.

* Censura, repressão política, industrialização acelerada e concentração do poder.

* 1939–1945: Segunda Guerra Mundial devasta a Europa.

* 1942: Brasil entra na guerra ao lado dos Aliados.

* Experiência do conflito e da ditadura molda a visão crítica de Drummond.


1945 – Publicação de A Rosa do Povo


* Fim da Segunda Guerra Mundial com Hiroshima, Nagasaki e a derrota do nazifascismo.

* Queda do Estado Novo no Brasil, início de período de redemocratização.

* Drummond lança A Rosa do Povo, reunindo 55 poemas — sua obra mais política.

* Publicação do poema “Nosso Tempo”, síntese da crise histórica e existencial.


1945–1950 – Guerra Fria e Polarização

* Formação da ONU (1945).

* Conflito ideológico entre EUA (capitalismo) e URSS (socialismo).

* Clima de insegurança, espionagem, perseguição política.

* Drummond continua escrevendo, mas A Rosa do Povo permanece como marco engajado da sua trajetória.


Décadas de 1950–1970 – Leitura Crítica

* Críticos como Antonio Candido e Alfredo Bosi analisam Nosso Tempo como exemplo de “poesia social” sem perder a dimensão lírica.

* Poema lido como retrato do Brasil urbano, industrial e alienado.

* Interpretação também como denúncia universal contra o capitalismo e a guerra.


Século XXI – Atualidade

* Poema ganha novas camadas de interpretação diante de crises globais: guerras, desigualdade, alienação digital, consumismo.

* Versos como “Toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem” soam atuais frente à exploração de dados e mercantilização da subjetividade.

* Nosso Tempo permanece referência para pensar a função crítica da arte em períodos de crise.



Nosso Tempo

Carlos Drummond de Andrade


[I]

Esse é tempo de partido

Tempo de homens partidos


Em vão percorremos volumes

Viajamos e nos colorimos

A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua

Os homens pedem carne fogo sapatos

As leis não bastam os lírios não nascem

Da lei meu nome é tumulto, e escreve-se

Na pedra


Visito os fatos, não te encontro

Onde te ocultas, precária síntese

Penhor de meu sono, luz

Dormindo acesa na varanda?

Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo

Sobe ao ombro para contar-me

A cidade dos homens completos


Calo-me, espero, decifro

As coisas talvez melhorem

São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto

Tenho palavras em mim buscando canal

São roucas e duras

Irritadas, enérgicas

Comprimidas há tanto tempo

Perderam o sentido, apenas querem explodir


[II]

Esse é tempo de divisas

Tempo de gente cortada

De mãos viajando sem braços

Obscenos gestos avulsos


Mudou-se a rua da infância

E o vestido vermelho

Vermelho

Cobre a nudez do amor

Ao relento, no vale


Símbolos obscuros se multiplicam

Guerra, verdade, flores?

Dos laboratórios platônicos mobilizados

Vem um sopro que cresta as faces

E dissipa, na praia, as palavras


A escuridão estende-se mas não elimina

O sucedâneo da estrela nas mãos

Certas partes de nós como brilham! São unhas

Anéis, pérolas, cigarros, lanternas

São partes mais íntimas

E pulsação, o ofego

E o ar da noite é o estritamente necessário

Para continuar, e continuamos


[III]

E continuamos é tempo de muletas

Tempo de mortos faladores

E velhas paralíticas, nostálgicas de bailado

Mas ainda é tempo de viver e contar

Certas histórias não se perderam

Conheço bem esta casa

Pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se

A sala grande conduz a quartos terríveis

Como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa

Conduz à copa de frutas ácidas

Ao claro jardim central, à água

Que goteja e segreda

O incesto, a bênção, a partida

Conduz às celas fechadas, que contêm

Papéis?

Crimes?

Moedas?


Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano

Ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta

Moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco

Pessoas e coisas enigmáticas, contai

Capa de poeira dos pianos desmantelados, contai

Velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai

Ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da

Costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai

Tudo tão difícil depois que vos calastes

E muitos de vós nunca se abriram


[IV]

É tempo de meio silêncio

De boca gelada e murmúrio

Palavra indireta, aviso

Na esquina tempo de cinco sentidos

Num só o espião janta conosco


É tempo de cortinas pardas

De céu neutro, política

Na maçã, no santo, no gozo

Amor e desamor, cólera

Branda, gim com água tônica

Olhos pintados

Dentes de vidro

Grotesca língua torcida

A isso chamamos: Balanço


No beco

Apenas um muro

Sobre ele a polícia

No céu da propaganda

Aves anunciam

A glória

No quarto

Irrisão e três colarinhos sujos


[V]

Escuta a hora formidável do almoço

Na cidade os escritórios, num passe, esvaziam-se

As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas

Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!

Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa

Olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso

Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida

Mais tarde será o de amor


Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem

O esplêndido negócio insinua-se no tráfego

Multidões que o cruzam não veem é sem cor e sem cheiro

Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul

Vem na areia, no telefone, na batalha de aviões

Toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem


Escuta a hora espandongada da volta

Homem depois de homem, mulher, criança, homem

Roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa

Homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem

Imaginam esperar qualquer coisa

E se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se

Últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa

Já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam

Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia

O corpo ao lado do corpo, afinal distendido

Com as calças despido o incômodo pensamento de escravo

Escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir

Errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor

Confiar-se ao que bem me importa

Do sono


Escuta o horrível emprego do dia

Em todos os países de fala humana

A falsificação das palavras pingando nos jornais

O mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores

Os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar

A constelação das formigas e usurários

A má poesia, o mau romance

Os frágeis que se entregam à proteção do basilisco

O homem feio, de mortal feiúra

Passeando de bote

Num sinistro crepúsculo de sábado


[VI]

Nos porões da família

Orquídeas e opções

De compra e desquite

A gravidez elétrica

Já não traz delíquios

Crianças alérgicas

Trocam-se; reformam-se

Há uma implacável

Guerra às baratas

Contam-se histórias

Por correspondência

A mesa reúne

Um copo, uma faca

E a cama devora

Tua solidão

Salva-se a honra

E a herança do gado


[VII]

Ou não se salva, e é o mesmo há soluções, há bálsamos

Para cada hora e dor há fortes bálsamos

Dores de classe, de sangrenta fúria

E plácido rosto e há mínimos

Bálsamos, recalcadas dores ignóbeis

Lesões que nenhum governo autoriza

Não obstante doem

Melancolias insubornáveis

Ira, reprovação, desgosto

Desse chapéu velho, da rua lodosa, do estado

Há o pranto no teatro

No palco? No público? Nas poltronas?

Há sobretudo o pranto no teatro

Já tarde, já confuso

Ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo

Vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos

Vai molhar, na roça madura, o milho ondulante

E secar ao Sol, em poça amarga

E dentro do pranto minha face trocista

Meu olho que ri e despreza

Minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado

Que polui a essência mesma dos diamantes


[VIII]

O poeta

Declina de toda responsabilidade

Na marcha do mundo capitalista

E com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas

Prometa ajudar

A destruí-lo

Como uma pedreira, uma floresta

Um verme


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