O Doutor Azambuja vai a Botafogo

Se o leitor me concede a fineza de uns minutos, contarei um episódio da vida do doutor Azambuja, médico de prestígio miúdo e graúdo, homem de ciência e, ouso dizer, filósofo de ocasião. Não me refiro à filosofia de cátedra, de manual, mas àquela que se destila entre uma visita e outra, no tilintar de uma xícara de café ou no silêncio do coche que avança preguiçoso pelas ruas da capital. Pois o doutor, ainda que discreto, guardava em si uma mania de pensar — mania incômoda para alguns, necessária para outros, e inevitável para ele próprio.

Ora, o Rio de Janeiro do início do século XX não era cidade que permitisse a seus habitantes viverem sem interrogação. Havia o esplendor da Guanabara, sim, mas também os cortiços da Lapa; os palacetes de Botafogo, mas igualmente os becos da Saúde; as avenidas que o prefeito Pereira Passos alargara a golpes de picareta e decreto, mas também os desalojados que se espremiam em estalagens fétidas. Contradições, dirá o leitor — e não se enganará. Mas não me apresso. Voltemos ao doutor.

O doutor Azambuja, como dizia, era médico de duas clientelas. Pela manhã, podia ser encontrado na Santa Casa de Misericórdia, entre os corredores cheirando a éter e humanidade. Ali tratava dos humildes: operários, quitandeiras, ex-escravizados que a República deixara livres no papel, mas não no estômago. Tratava deles com paciência e uma espécie de ternura envergonhada; não era homem de efusões, mas sentia certo gosto em ser útil. Talvez fosse vocação, talvez cálculo — afinal, curar pobres dá pouco dinheiro, mas rende prestígio moral, que por sua vez pode atrair clientes abonados.

E esses clientes existiam, sim. Não era raro que, findo o expediente na Santa Casa, Azambuja fosse chamado a algum sobrado elegante do Catete, ou a um palacete em Botafogo, ou mesmo, de quando em quando, a uma chácara em Laranjeiras. A medicina, nesse ponto, parecia com a música: tocava-se tanto em bailes da elite quanto em batizados da plebe.

Naquela manhã em particular, o doutor deixara o Catete em direção a Botafogo. Havia sido convidado — melhor, convocado — pelo comendador Maciel Araújo, barão do café, título herdado dos tempos do Império. Que importa se a monarquia caíra? O comendador fazia questão de ostentar sua nobreza como quem ostenta um diamante herdado da bisavó: pode estar fora de moda, mas reluz.

Não quero ainda falar do comendador; basta dizer que era homem de posses, influência e manias. Sua residência, na Rua São Clemente, era das mais vistosas. O doutor, acostumado às casas modestas do centro, não deixava de notar o contraste quando adentrava aqueles portões. Mas não nos antecipemos.

O Trajeto

O coche do doutor, modesto como convinha a um médico sem ostentação, partiu do Catete. Era uma manhã clara, dessas que o sol parece exagerar para mostrar serviço. O cocheiro, figura silenciosa, conduzia com a calma dos que sabem que a pressa é inimiga da vida.

As ruas estavam movimentadas. Vendedores ambulantes apregoavam seus produtos, meninos descalços corriam atrás de charretes, senhoras caminhavam com sombrinhas, guardando-se do sol mais do que dos olhares. O doutor, entre uma esquina e outra, deixava-se levar por pensamentos.

E que pensamentos? Uns práticos, outros divagantes. Considerava, por exemplo, como a cidade mudara nos últimos anos: os cortiços derrubados para dar lugar a avenidas, a nova iluminação pública, os bondes elétricos. Tudo isso parecia progresso, e era. Mas perguntava-se: progresso para quem? Não eram poucos os pacientes que vinham à Santa Casa queixar-se não apenas de tosse ou febre, mas de desalojamento. Onde antes tinham um quarto modesto, agora havia um bulevar. Belo para os olhos, cruel para o estômago.

Digressão minha, confesso. Mas não resisto: toda cidade é feita de camadas, como as cebolas. Quem olha de fora vê a casca brilhante; quem vive por dentro conhece as lágrimas.

Chegando a Botafogo, o coche avançou pela Rua São Clemente. Ali, sim, a casca brilhava. As mansões sucediam-se, cada qual tentando superar a vizinha em colunas, varandas e jardins. Era o bairro da moda desde meados do século XIX, preferido das elites que buscavam um pouco de ar mais puro do que o do centro. Alguns chamavam-no de arrabalde aristocrático, outros de refúgio elegante. O certo é que Botafogo tornara-se vitrine da riqueza cafeeira e mercantil.

O Bairro

Permita-me, leitor, um breve retrato do bairro — retrato feito não com pincel, mas com palavras. Imagine uma rua larga, margeada por casarões de fachadas imponentes, grades trabalhadas, jardins bem cuidados. Os coqueiros erguiam-se como sentinelas tropicais, enquanto bougainvilles coloriam os muros. Aqui e ali, carruagens estacionadas denunciavam visitas de igual prestígio. O mar de Botafogo, ao fundo, completava o cenário como moldura natural.

Era ali que morava o comendador Maciel Araújo, senhor de posses e de escrúpulos seletivos. Sua casa destacava-se não apenas pelo tamanho, mas pelo gosto ostentatório. Colunas lembrando templos romanos, janelas de madeira finamente entalhadas, um portão de ferro que parecia mais adequado a um palácio do que a uma residência. Tudo isso proclamava, sem modéstia: “Aqui mora um homem importante.”

O doutor, ao aproximar-se, sentiu aquele misto de familiaridade e desconforto que sempre o tomava nas casas da elite. Familiaridade, porque não era a primeira vez que ali entrava; desconforto, porque sabia que, entre aquelas paredes, a doença não se chamava doença, mas enfermidade — e que os pacientes, ao contrário dos da Santa Casa, tinham mais títulos do que sintomas.

O Doutor e Suas Reflexões

Enquanto o coche parava, Azambuja deixou escapar um pensamento silencioso: quão estranho era ser ponte entre dois mundos. De manhã, atendia Divina Aparecida, empregada que morava num cortiço da Lapa, sofrendo de bronquite e de desalento. À tarde, sentava-se diante de comendadores, baronesas, conselheiros, ouvindo queixas de insônia ou melancolia. Era como se a cidade fosse uma peça de teatro, e ele, médico, tivesse passe livre para o palco e para os bastidores.

Mas não quero me adiantar. É chegada a hora de apresentar o comendador — ou, antes, de mostrar o encontro que se dará entre esses dois personagens tão distintos: o doutor de espírito inquieto e o senhor de fortuna satisfeita.

O portão abriu-se com solenidade, como se o ferro se orgulhasse de servir a tão distinto morador. O coche do doutor parou diante do palacete. Desceu ele, ajeitou o fraque, consultou o relógio de algibeira — hábito adquirido mais por pose do que por necessidade — e subiu os degraus de mármore que conduziam à entrada.

Um criado de libré, cuja gravidade parecia digna de um mordomo inglês, conduziu-o pelo vestíbulo. O doutor, que conhecia casas, não deixava de notar os excessos: lustres de cristal francês, tapetes persas, quadros a óleo de ancestrais que nunca existiram. Eis uma peculiaridade das elites: inventam genealogias como quem inventa sobremesas.

Foi introduzido no salão principal, onde o comendador Maciel Araújo o esperava sentado numa poltrona de espaldar alto. Era homem corpulento, de barbas bem cuidadas, vestindo casaca apesar do calor. Ao vê-lo, Azambuja recordou uma frase que certa vez lera: alguns homens carregam a fortuna no corpo, como outros carregam a febre.

— Doutor Azambuja! — exclamou o comendador, abrindo os braços como quem recebe um parente dileto. — Finalmente chegou! Já temi que houvesse esquecido de mim.

— Vossa senhoria sabe que não me esqueço de meus pacientes — respondeu o doutor, com um leve sorriso. — Ainda que, em verdade, vossa senhoria não esteja doente, mas apenas… como direi?... enfermo.

O comendador riu, satisfeito com a distinção. Doença era coisa de pobre; enfermidade, de rico.

— Justo, justo! — assentiu. — Não me sinto propriamente mal, mas há esta fadiga que me persegue. A República, doutor, é fatigante.

O doutor acomodou-se numa cadeira e abriu sua maleta. O gesto de examinar foi mais simbólico do que médico: apalpou-lhe o pulso, auscultou-lhe o peito, perguntou por indisposições. Tudo respondido com floreios, como convinha a um homem que fazia de sua saúde um palco.

Conversa Política

— Diga-me, doutor — começou o comendador, com aquele tom de quem deseja opinião mas só aceitará aplauso —, o que pensa da situação política?

Azambuja hesitou. Não era homem de grandes paixões partidárias, mas tinha opinião formada.

— Penso, comendador, que a República ainda busca firmar-se. Há quem diga que derrubar o trono era o bastante, mas descobrimos que o trono estava dentro de nós.

O comendador arregalou os olhos, satisfeito com a frase.

— Brilhante! — exclamou. — Eu próprio, confesso, tenho saudades do velho regime. Não que fosse perfeito, longe disso, mas havia ordem, havia decoro. Hoje qualquer um se diz cidadão, e até o mais ignóbil exige direitos!

O doutor calou-se por um instante. Sabia que contrariar um cliente abonado podia ser tão perigoso quanto prescrever-lhe um veneno. Mas não resistiu a um comentário:

— Os direitos, comendador, são como remédios: quanto mais se negam, mais necessidade parecem ter.

O comendador franziu o cenho, mas logo riu, como quem perdoa uma ousadia.

Extravagâncias da Elite

A conversa derivou para outros temas. O comendador falava de sua fazenda de café em Vassouras, dos títulos que insistia em usar apesar da República, das festas que promovia em sua residência. O doutor ouvia, com aquele ouvido treinado que sabe distinguir sintomas de vaidade de sintomas reais.

— Veja, doutor — dizia o comendador —, outro dia recebi aqui um ministro de Estado. Ministro! E ele próprio me confessou que a República não passa de uma monarquia envergonhada. Eu lhe disse: “Meu caro, se é para envergonhar-se, melhor seria continuar com o imperador!”

Riu de sua própria anedota. O doutor sorriu polidamente, mas por dentro perguntava-se se o ministro teria de fato dito tal coisa, ou se o comendador inventava diálogos como inventava genealogias.

Nesse momento, entrou na sala uma criada trazendo uma bandeja de café. O aroma invadiu o ambiente, mais agradável do que qualquer discurso.

— Ah, Divina! — chamou o comendador. — Sirva o doutor com capricho.

Divina Aparecida

O doutor voltou o olhar para a criada e reconheceu-lhe o rosto: era Divina Aparecida, paciente sua na Santa Casa. Recordava-se de tê-la atendido poucas semanas antes, queixando-se de uma tosse persistente. Morava num cortiço da Lapa, segundo lhe dissera, e trabalhava ali para sustentar três filhos.

— Dona Divina… — murmurou, num tom baixo, mas suficiente para que ela compreendesse que fora reconhecida.

Ela, constrangida, limitou-se a sorrir discretamente, sem se demorar. Serviu o café e retirou-se com a discrição dos que sabem que sua presença deve ser invisível.

O comendador, percebendo o olhar do doutor, comentou:

— Boa moça, essa Divina. Tem saúde frágil, mas trabalha como um homem. Gente do povo é assim mesmo, não?

O doutor conteve a resposta que lhe vinha à boca. Sabia que Divina não tinha saúde frágil por natureza, mas por necessidade. A tosse era resultado da umidade do cortiço, da má alimentação, do excesso de trabalho. Mas calou-se; não era hora de transformar uma consulta em sermão social.

A Doença Invisível

Terminada a xícara de café, o doutor fechou a maleta.

— Então, doutor? — perguntou o comendador. — Qual é meu mal?

— O mal de vossa senhoria, comendador — respondeu Azambuja, após breve pausa — é a fadiga de quem carrega mais títulos do que ossos. Prescrevo-lhe descanso, menos preocupações políticas e algum passeio à beira-mar.

O comendador riu, satisfeito com a receita que mais parecia elogio.

— Justo, justo! Sempre soube que o senhor tem espírito. É por isso que confio mais no senhor do que nesses médicos que só falam latim.

Levantou-se, apertou-lhe a mão com força e acompanhou-o até a porta.

No caminho, passaram novamente por Divina, que arrumava discretamente uma mesa lateral. O doutor trocou com ela um olhar rápido, carregado de uma espécie de solidariedade silenciosa. Ele, que transitava entre mundos, compreendia melhor do que ninguém o abismo que separava aquela criada de seu patrão.

A Rua São Clemente

De volta ao exterior, o doutor respirou fundo. O sol já se inclinava no céu, dourando as fachadas das mansões. A Rua São Clemente parecia um desfile de vaidades arquitetônicas, cada palacete competindo em ostentação. No entanto, sabia ele que atrás de muitos daqueles muros viviam as mesmas angústias que encontrava nos cortiços: doenças, medos, solidão. Apenas o verniz mudava.

Entrou no coche, e o veículo pôs-se em movimento, deixando para trás o palacete do comendador. No caminho de volta, o doutor permitiu-se refletir — mas essas reflexões, leitor, reservo para o próximo bloco, onde veremos como um médico pode ser também filósofo, ainda que filósofo involuntário.

O caminho de volta ao Catete foi feito em silêncio, interrompido apenas pelo estalar dos trilhos do bonde e pelo murmúrio das vozes da cidade que se espalhavam entre edifícios e árvores. O doutor Azambuja sentiu o peso das observações da tarde. Entre uma xícara de café servida com precisão e o sorriso contido de Divina Aparecida, percebera novamente o contraste pungente que fazia da cidade um palco de desigualdades tão profundas quanto invisíveis.

Enquanto o veículo avançava, recordou a Santa Casa, onde pela manhã recebera pacientes que poderiam muito bem ter sido pessoas do mesmo sangue, mas de outro estrato social: operários que sustentavam os sobrados de Botafogo e, simultaneamente, eram ignorados por eles, empregados anônimos do luxo que frequentava a residência do comendador. Pensou nas casas altas, nos jardins, nos portões de ferro, e lembrou-se dos cortiços, das paredes úmidas, do frio, do ar carregado de fumaça de cozinha e lenha.

Chegou à conclusão de que o Rio de Janeiro, apesar de belo, não deixava de ser cruel. Era a capital de uma República que prometera igualdade, mas cuja prática ainda cedia ao fascínio da herança imperial e da fortuna acumulada. O doutor, embora satisfeito com seu papel de ponte entre mundos, sentiu novamente a ironia de sua profissão: curava corpos que pertenciam a classes distintas, mas sabia que a doença da cidade não se limitava ao físico; estava na alma, na organização social, na injustiça.

Pensamentos sobre Divina

Divina Aparecida ocupou seus pensamentos durante o trajeto. Ela representava a esperança de que a medicina pudesse alterar destinos, ainda que em doses mínimas. Ao vê-la servir o café ao comendador, percebera o quanto a saúde da plebe dependia da benevolência — muitas vezes caprichosa — da elite. Um contraste que o desconcertava: aquela mulher, frágil, porém resistente, tinha suas condições de vida diretamente ligadas às decisões e privilégios de um homem que, embora educado, raramente contemplava a perspectiva alheia.

— Que mundo é este, — murmurou mentalmente, — em que a mesma pessoa é paciente de um e serva de outro?

A reflexão trouxe consigo certa melancolia, mas também a determinação tranquila de continuar seu ofício com igual diligência. Sabia que, mesmo limitado, seu trabalho valia algo: cada paciente atendido era uma vitória silenciosa contra a desigualdade, um lembrete de que a humanidade ainda persistia, mesmo nos recantos mais invisíveis.

Retorno ao Catete

O coche finalmente atingiu o Largo do Machado, e dele o doutor resolveu descer e caminhar a pé pelas ruas do Catete. O bairro, embora mais simples que Botafogo, ainda exibia charme e tradição: casarões antigos, árvores alinhadas, comércio de proximidade. As pessoas cumprimentavam-no com acenos de reconhecimento; não por sua fama, mas por sua presença constante entre eles, um hábito que conferia à figura do médico um ar de confiança e respeito silencioso.

Enquanto caminhava, percebeu novamente os contrastes que haviam povoado sua visita: os títulos e brasões que persistiam na memória da República, a ostentação arquitetônica, a riqueza que se exibia sem pudor, e, em paralelo, a fragilidade de corpos e almas que mal tinham direito a uma refeição adequada. Tudo isso coexistia na mesma cidade, à vista de todos, mas quase invisível aos olhos distraídos.

Filosofia de um médico

Chegando à sua residência, o doutor Azambuja retirou o chapéu, repousou a maleta, e sentou-se em sua sala de estudos. À sua volta, livros, cadernos, instrumentos médicos e notas de consultas antigas formavam um mosaico de experiências e observações. Ali, finalmente, podia dar vazão às suas reflexões mais íntimas.

Pensou na cidade: capital da República, antiga cidade imperial, ponto de encontro de culturas, comércio e política. Belíssima na geografia, estonteante na arquitetura, mas injusta na organização social. Cada rua, cada praça, cada casa parecia contar uma história diferente, uma narrativa em camadas que revelava privilégios e carências lado a lado.

— Belo e injusto, — disse em voz baixa para si mesmo. — Esta cidade é uma síntese da condição humana: luxos e misérias coexistem, governos e títulos se sucedem, e, ainda assim, a vida segue, obstinada, indiferente à lógica que desejamos impor.

O doutor refletiu sobre o papel do médico nesse cenário. Não se tratava apenas de curar doenças físicas, mas de compreender, ainda que de forma limitada, as enfermidades sociais e morais. Cada consulta, cada observação, cada gesto era um fragmento de resistência contra o abandono da alma e do corpo.

O contraste social

Recordou novamente o comendador e sua ostentação; a conversa sobre política, riqueza, títulos, e, sobretudo, a melancolia que o fazia parecer doente, embora o corpo estivesse saudável. Pensou em Divina, que servira o café e sorrira discretamente, mulher cuja vida dependia da fortuna de outrem, mas que possuía coragem e dignidade.

Entre esses dois extremos, o doutor Azambuja via a própria cidade refletida: Botafogo e seus palacetes; o Catete e seus casarões; a Lapa e seus cortiços; a Santa Casa e seus corredores. Tudo coexistia, e ele, com suas visitas, era observador silencioso e participante ativo.

— Somos todos partes desta engrenagem, — concluiu. — Alguns mais visíveis, outros invisíveis; alguns ricos em títulos, outros pobres em oportunidades; alguns servem, outros mandam; e todos, inevitavelmente, sofremos sob a mesma lei da vida.


Uma metáfora final

Levantou-se, aproximou-se da janela, e contemplou a cidade que se estendia à sua frente. O Corcovado, ao longe, parecia vigiar tudo com paciência ancestral. O mar refletia o céu, e o vento carregava os aromas da baía, mistura de sal, peixe e fumaça.

Pensou no Rio como uma metáfora viva: cada rua uma veia; cada casa um órgão; cada morador, uma célula da grande massa urbana. E, como em qualquer organismo, havia saúde e doença, equilíbrio e desequilíbrio, harmonia e ruptura.

O doutor Azambuja sorriu para si mesmo, ciente de seu papel duplo: médico de pobres e ricos, observador das contradições, filósofo involuntário de uma cidade bela e injusta. Sabia que nada poderia mudar a totalidade da situação, mas também sabia que cada gesto de cuidado, cada consulta bem feita, cada olhar atento, era um pequeno ato de justiça.

E, assim, encerrava-se mais um dia do doutor Azambuja: entre dois mundos, entre corpos e almas, entre riqueza e pobreza, entre luxo e miséria, sempre atento ao que a cidade tinha de belo e de cruel, sempre consciente de que a vida se desenrola em camadas, e que cada camada exige do observador uma mistura de compaixão, ironia e paciência.

E se perguntarem, caro leitor, se havia cura para todas essas enfermidades sociais, Azambuja responderia com sua ironia característica:

— Não, não há cura completa; mas enquanto houver observação, cuidado e reflexão, ainda há remédio para a alma.

E com este pensamento, fechou a janela, suspirou, e deixou a noite tomar conta da cidade, certo de que, amanhã, voltaria a percorrer os corredores da Santa Casa, as ruas do Catete e os salões de Botafogo, ponte entre mundos, médico e filósofo, Azambuja, o doutor.

 
● Imagens: 1- Juan Gutierrez.  Rio de Janeiro, Rua São Clemente, 1890. Instituto Moreira Salles. Nota: A foto foi colorida através de inteligência artificial; 2- Obra de Bernhard Wiegandt, "Rua São Clemente, Rio de Janeiro" (1884), da Coleção Fadel

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