Serie crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O Largo, César e a Miscelânea
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
O Largo, César e a Miscelânea
Numa manhã dessas, em que a cama insiste em me abraçar com mais fervor que qualquer amante, resolvi traí-la com a cidade e estiquei as pernas até o Largo da Carioca. O ano era 1907, a República ainda engatinhava com seus sapatos de verniz mal engraxados, e o Rio, coitada, sonhava vestir-se de Paris, embora o tecido fosse mais para algodão cru do que para seda francesa.
O Largo, palco antigo de águas e rezas, surgira no século XVII, quando o Chafariz da Carioca cuspia a frescura da serra para matar a sede dos fiéis e dos infiéis. Hoje, porém, cuspia era o povo: vendedores, pregadores, vadios, bacharéis sem clientela, senhoras de véu e botinas, tudo misturado numa sinfonia desafinada.
Ah, que espetáculo! O Brasil queria ser moderno, mas o Largo permanecia um mercado de contradições: o burguês erguia o nariz para o frade pedinte, e o cocheiro cuspia tabaco aos pés do doutor. Parecia até que a República resolvera se divertir à custa de nós mesmos.
E, já que falo em República, recordo-me de Shakespeare. Júlio César, em sua majestade, dizia desconfiar de Cássio, magro e pensativo: “Esse sujeito é perigoso; só quero ao meu lado gente gorda, de sono farto e cabelos brilhantes”. Pois não é o retrato da nossa oligarquia de poltrona? Homens de pança avantajadas, engomados, que pensam apenas na digestão do jantar e jamais na do país. Os poucos magros, secos de privilégios e cheios de ideias, são logo apelidados de subversivos, perigosos, agitadores. Melhor para César — ou seria melhor para Pinheiro Machado, Campos Sales e seus cúmplices de ocasião?
Enquanto isso, o Largo assistia indiferente. Nele, o frade franciscano dividia espaço com o mascate sírio; a costureira se esbarrava no funcionário público que fingia pressa; e eu, cronista de meia tigela, observava o vaivém como quem vê um teatro de bonecos. O Largo era o coração que pulsava sem saber se batia pelo povo ou pelo poder.
E talvez, no fundo, nunca tenha importado. Porque no Rio, meu caro leitor, tudo se reforma: ruas, praças, palácios. Só o espírito — essa miscelânea de sonho europeu e ginga africana — permanece eterno, irônico e, sobretudo, carioca.
● Imagem: Augusto Malta. Rio de Janeiro, Largo da Carioca, 01/08/1907. Instituto Moreira Salles
● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Carioquinha" de Waldir Azevedo. A música ilustra essa crônica:
https://youtu.be/vSZwmCKfNdo?si=MDcqJIkzphv1PTnK
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