Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O pai do morro


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


O pai do Morro

Era o ano de 1894, e a República estava em polvorosa — e com muita pólvora. A Armada se rebelara, como é do feitio das Armadas, que não se contentam em flutuar: querem sempre remar contra. Eu, que nunca fui íntimo da fumaça dos canhões, tratei de me afastar da briga. Primeiro passei na Casa Granado, que tem bálsamos para o corpo e perfumes para a alma. Depois, para garantir a parte celeste, entrei na Igreja do Carmo e tracei um sinal da cruz tão rápido quanto um telegrama. Só então, munido de sabão e benção, segui rumo à Rua Direita, apressado como quem foge de credor.

O destino era o Morro do Castelo, onde me esperava o velho Fugêncio, mais conhecido — e por mérito próprio — como o pai do morro. Não se trata de metáfora poética ou homenagem cívica: era paternidade pura, simples e numerosa. A fama de conquistador do Fugêncio, em sua mocidade, foi tão ampla quanto o Império, só que menos organizada. Diziam que ele deixava descendência em cada esquina, e como a cidade tem muitas esquinas, imagine-se o mapa genealógico.

Conta-se que, certa feita, ao ser interpelado por um tenente da polícia sobre quantos filhos possuía, Fugêncio sacou do bolso um papel amarelado, onde constava uma lista interminável de nomes. Lia em voz alta como quem chama a tropa para a formatura. O oficial, homem de disciplina, chegou a saudá-lo, convencido de que aquilo era um batalhão.

O curioso é que Fugêncio, longe de se envergonhar, gabava-se: dizia que sua fertilidade era um serviço público, uma garantia de futuro para a pátria. Enquanto a República desmoronava em pólvora, ele edificava cidadãos. E talvez tivesse razão, pois, se a Pátria é mãe gentil, necessitava, como toda mãe, de um pai que lhe desse filhos.

Assim era Fugêncio: mais prolífico que coelho de gaiola, um verdadeiro assombro da natureza. O morro, dizem, tomou seu nome não por tradição histórica, mas porque cada pedra escondia um rebento seu. E, se é verdade que os canhões falavam na Guanabara, no Castelo só se ouvia o eco das vozes infantis — a mais ruidosa e inocente forma de revolta que já conheci.


● Imagem: Juan Gutierrez. Rio de Janeiro, 1894, Morro do Castelo visto da Igreja do Carmo. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Samba do Urubu" de Pixinguinha. A música ilustra a crônica.

https://youtu.be/PXlbxOYfBg0?si=PlnlZbd9gUvAZYMJ


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Muito obrigado, com apreço.

 


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