Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Democracia de areia e mar


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


Democracia de areia e mar

Meu caro leitor, estamos em 1955, e Ipanema não é apenas uma praia, mas uma alegoria nacional, um palco onde a República ensaia sua ópera democrática de pés descalços. Vede a cena: quatro moças, jovens deusas de maiô retrô, compondo com o sol e a areia uma liturgia da igualdade. Não há títulos, não há heranças, não há barões do café, nem mesmo industriais de gravata: aqui, todos estão reduzidos ao que realmente importa — a resistência da pele ao bronzeado e a habilidade de não se queimar no primeiro mergulho.

Notai, sobretudo, a que se encontra sentada na areia, recostada com uma dignidade olímpica entre as pernas atléticas das colegas. Poderia ser a Minerva de maiô, mas, sendo carioca, contenta-se em ser apenas musa do momento, ladeada pelo templo improvisado dos corpos das amigas. É a democracia encarnada: a areia não escolhe a quem queimar, o mar não distingue mocinha do Catete ou do Méier. Que outro comunismo, pergunto eu, se poderia praticar com tanta devoção? Aqui a utopia soviética dissolve-se em água salgada, e todos aplaudem.

Não nos iludamos, porém. Essa igualdade arenosa, tão proclamada nos discursos das ondas, termina na primeira sombra de guarda-sol alheio. O mesmo cidadão que ali se deita, proclamando ser irmão de todos, não hesita em disputar com unhas e dentes um metro quadrado de areia mais próximo do mar. Democracia sim, mas de toalha. Comunismo de biscoito de polvilho — e só até a última mordida.

Ipanema! Esse laboratório da convivência nacional. Se o Congresso tivesse a clarividência de reunir seus debates na praia, talvez o Brasil já tivesse resolvido suas questões constitucionais, armado apenas com maiôs e bolas de vôlei. Mas, estamos no Brasil, temo que logo surgisse a bancada dos protetores solares, disputando com a frente dos vendedores de mate e limonada.

Resta, contudo, a beleza. E nisso, as quatro jovens da fotografia são soberanas: umas erguendo-se como colunas dóricas, outra repousando como deusa helênica reinventada pelo samba. Tudo sob a bênção do Atlântico, que ri de nossa seriedade e nos devolve, a cada onda, o aviso: “a democracia, senhoras e senhores, é feita de areia — escorre entre os dedos”.


● Imagem: José Medeiros. Rio de Janeiro, mulheres na praia de Ipanema com a Pedra da Gávea ao fundo em 1955. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça a canção "Ela é carioca" de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. A música ilustra a crônica.

 https://youtu.be/5YrXx5DytQ8?si=T6gsf5i9oFtZ46Nw


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Muito obrigado, com apreço.

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