Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O bife e a bruxa
Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
O bife e a bruxa
Ano de 1922. A República andava claudicante, tropeçando nos próprios malfeitos, e eu, cronista sem maiores virtudes, decidi enfrentar uma missão mais séria que qualquer manifesto modernista: comer um filé mignon lá no Arco do Teles, na Travessa do Comércio. Indicação da turma do Clube dos Desiludidos.
O restaurante era do Tião, dito “mãos leves”, não por manejar facas como mestre-cuca, mas por ter mãos que no passado aliviavam bolsos na Rua Primeiro de Março. Hoje, regenerado — ao menos oficialmente — servia bifes de fazer tremer apóstolo.
Sentei-me à mesa, o apetite erguido como bandeira revolucionária. Pedi o famoso filé. Eis que surge Tião, trazendo o prato como quem conduz oferenda a Baco. O cheiro, meu caro leitor, já me fazia salivar como senador diante de verba extra. Mas Tião, em vez de calar-se e deixar-me em paz, resolveu estragar a festa:
— Doutor, cuidado. Esse filé pode ter dedo da Bárbara dos Prazeres.
— Da quem, Tião?
— Da bruxa do Arco, ora! Portuguesa, matou marido, matou amante, virou prostituta, depois velha sem freguesia. Dizem que, para recuperar a juventude, bebia sangue morno de crianças retiradas da roda dos enjeitados.
Olhei para o bife, rubro, suculento. Um pensamento me atravessou: seria molho madeira ou sangue...? É melhor não pensar.
— Tião, não me venha misturar gula com necromancia.
— Pois misturo, doutor. E se o segredo da maciez for receita de feitiçaria? Vai que a carne está tão tenra porque… bem, a bruxa ainda ronda a cozinha?
Minha faca hesitou no ar. O garfo tremia, como se tivesse consciência.
— Então, Tião, devo comer ou chamar um padre?
Ele sorriu, maroto:
— Coma, doutor. Maldição ou não, todo freguês volta. Quem prova não larga mais.
Confesso: fiquei dividido entre o medo da bruxa e o desejo do filé. Mas, feito homem prático, escolhi a segunda opção. Cortei a carne, o suco escorreu no prato como ata de sessão parlamentar, e provei. Estava celestial. Ou infernal — o paladar não distingue essas teologias. Mas rezei só por garantia.
E assim concluí: se Bárbara ainda cozinha por aqui, que venha mais uma rodada. Maldição, sim — mas com acompanhamento e sobremesa. E não me levem a sério!
● Imagem: Autor não identificado. Rio de Janeiro, Arco do Teles, Travessa do Comércio, 1922 circa. Instituto Moreira Salles
● Clique no link abaixo e ouça o chorinho "Atrevido" de Waldir Azevedo. A música ilustra essa crônica:
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Muito obrigado, com apreço.
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