Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! O bolo de dona Inercina


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


O bolo de dona Inercina

Corria eu — vejam só — não como o atleta da Praça XV nem como o bonde elétrico da Carioca, mas com o entusiasmo que só a fofoca gratuita concede às pernas. O destino? O Morro do Castelo, esse berço esplêndido onde a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro estendeu seus primeiros cueiros. Já se vivia o ano de 1917, e o século, vaidoso, também corria; quem ficasse parado era confundido com poste, e ainda corria o risco de levar prego de cachorro vadio.

Mas não pense o leitor que eu me cansava por devoção histórica. Subia a Ladeira da Misericórdia — primeira rua da cidade, vejam a ironia — por outro motivo: a festa de dona Inercina. Ah, sim! A senhora mais antiga do morro, mais antiga que o próprio sino da igreja, e, dizem, até mais antiga do que a vovó Maria do Congo, a benzedeira de plantão. Anunciava-se, com pompa de edital, que a veneranda dama completava 120 anos. Alguns maldizentes alegavam exagero; mas, convenhamos, quem discute idade com uma senhora tão resistente arrisca-se a sair com olho gordo e reumatismo.

A festa era de um esplendor quase oficial. A quituteira da rua servia bolinhos de bacalhau, enquanto o sobrinho do farmacêutico oferecia refrescos suspeitosamente fortes. Um grupo de violões, cavaquinho, pandeiro e até trombone animava a ladeira, onde moças rodopiavam suas saias com tal vigor que até as pedras coloniais coravam de pudor. O bolo, meus senhores, era a obra-prima: três andares de açúcar, glacê e ousadia arquitetônica, digno de rivalizar com a cúpula da Igreja de São Sebastião.

E dona Inercina? Pois lá estava, trêmula como vela ao vento, mas firme no sorriso. Cabelos brancos como espuma da Guanabara, olhos miúdos que já viram mais invasões de rato que de soldados, e uma paciência que só a eternidade dá. Diziam que ela lembrava o dia em que Estácio de Sá espirrou na praia da Saudade. Talvez lembrasse mesmo, talvez fosse apenas efeito do vinho caseiro.

O certo é que naquela tarde o morro inteiro dançou, comeu e brindou. E eu, cronista apressado, compreendi: nada corre tão depressa quanto a vida — salvo, talvez, a idade de dona Inercina, que, ao que tudo indica, continua correndo até hoje.


● Imagem: Autoria não identificada. Morro do Castelo visto da Ladeira da Misericórdia. Instituto Moreira Salles

● Clique no link abaixo e ouça a música "Trombone Atrevido" com Zé da Velha e Silvério Pontes. A música ilustra essa crônica:

https://youtu.be/I5R-F2GCfA4?si=sJY-xR7eLRJYk3MG


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Muito obrigado, com apreço.

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