Uma análise histórica da música "Recesseamento"
"Recesseamento", uma música composta por Assis Valente e interpretada pela "pequena notável", Carmen Miranda, reflete os aspectos históricos, sociais e políticos do Brasil da época em cada estrofe.
A LETRA:
Em 1940 lá no morro começaram o recenseamento
E o agente recenseador esmiuçou a minha vida, foi um horror
E quando viu a minha mão sem aliança
Encarou para a criança que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
E se era do batente ou era da folia
Obediente eu sou a tudo que é da lei
Fiquei logo sossegada e falei então
O meu moreno é Brasileiro, é fuzileiro
E é quem sai com a bandeira do seu batalhão
A nossa casa não tem nada de grandeza
Nós vivemos na pobreza, sem dever tostão
Tem um pandeiro, tem cuíca, um tamborim
Um reco-reco, um cavaquinho e um violão
Em 1940 lá no morro começaram o recenseamento
E o agente recenseador esmiuçou a minha vida, foi um horror
E quando viu a minha mão sem aliança
Encarou para a criança que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
E se era do batente ou era da folia
Fiquei pensando e comecei a descrever
Tudo, tudo de valor que meu Brasil me deu
Um céu azul, um Pão de Açúcar sem farelo
Um pano verde e amarelo, tudo isso é meu
Tem feriado que pra mim vale fortuna
A Retirada de Laguna vale um cabedal
Tem Pernambuco, tem São Paulo, tem Bahia
Um conjunto de harmonia que não tem rival
E em 1940 lá no morro começaram o recenseamento
E o agente recenseador esmiuçou a minha vida, foi um horror
E quando viu a minha mão sem aliança
Encarou para a criança que no chão dormia
E perguntou se meu moreno era decente
E se era do batente ou era da folia
A ANÁLISE:
Na primeira estrofe, a menção ao recenseamento no morro em 1940 ilustra um período de intensa transformação social e política no país. O agente recenseador, ao investigar detalhes da vida do narrador, revela a intrusão do Estado na intimidade e na rotina dos moradores, evidenciando a interferência governamental nos espaços cotidianos das classes menos favorecidas.
A aliança ausente na mão do narrador é percebida pelo agente, evidenciando o olhar discriminatório sobre a estrutura familiar e os padrões morais estabelecidos pela sociedade. A referência ao "moreno", associada à sua ocupação ou estilo de vida, denota estereótipos e preconceitos sociais presentes na época, onde ser "do batente" (trabalhador) ou "da folia" (ligado a atividades não convencionais) implicava em julgamentos de moralidade.
A segunda estrofe ressalta a simplicidade da vida cotidiana do narrador, contrastando com a intrusão do recenseamento. A descrição dos instrumentos musicais revela a riqueza cultural e a importância da música na vida da comunidade, mesmo em meio à pobreza material. Essa é uma representação da resistência cultural e da expressão artística como parte integrante da identidade dos moradores do morro.
A terceira estrofe reforça a reação do narrador ao agente recenseador, expressando um sentimento de patriotismo e amor pelo Brasil. Ao descrever elementos simbólicos e históricos do país, como o céu azul, o Pão de Açúcar, as cores da bandeira e eventos históricos, o narrador ressalta o valor de sua nacionalidade e sua identidade cultural. Há também um outro elemento de reforço desta nacionalidade, a "Retirada de Laguna". Episódio importante da Guerra do Paraguai (1864-1870) que foi visto durante anos como ato de heroísmo e superação do Exército brasileiro. Era muito celebrado nas primeiras décadas do século XX.
A música retrata, assim, a intrusão do Estado na vida cotidiana dos mais pobres, a discriminação social, os estereótipos raciais e culturais da época, bem como a resistência e o orgulho de ser brasileiro. Na década de 1940, o país estava sobre a égide da ditadura do Estado Novo (1937-1945) de Getúlio Vargas. Ao abordar o recenseamento como uma experiência invasiva e a resposta do narrador com elementos culturais e patrióticos, a música transcende a realidade local e reflete temas universais de identidade, pertencimento e resistência.
Nota: Para ouvir o samba de Assis Valente cantado por Carmen Miranda, basta acessar o link:
Boa análise!
ResponderExcluirObrigado!
ExcluirParabéns pela análise bem detalhada, implícita na referida canção. Que texto rico.Hosana
ResponderExcluirMuito obrigado!
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