As Ordenações Filipinas


As Ordenações Filipinas, também conhecidas como Código Filipino, foram um marco legislativo que exerceu influência profunda e duradoura nas estruturas jurídicas de Portugal e de seus territórios ultramarinos, incluindo o Brasil. Promulgadas em 11 de janeiro de 1603 sob o reinado de Filipe II de Espanha (também Filipe I de Portugal), as Ordenações visavam reorganizar o direito existente, consolidando normas que se encontravam dispersas e garantindo uma maior uniformidade na aplicação das leis. Sua vigência se estendeu por quase 300 anos, com impacto duradouro tanto em Portugal quanto no Brasil.

As Ordenações Filipinas foram, em grande parte, uma reforma das Ordenações Manuelinas, conjunto legal anterior que datava do reinado de D. Manuel I de Portugal. No entanto, o contexto político da época em que foram promulgadas as Filipinas, com Portugal sob a União Ibérica (1580-1640), deu um caráter de centralização e racionalização ainda mais claro ao código, refletindo a necessidade da monarquia ibérica de garantir maior controle sobre seus vastos domínios. A consolidação legal promovida pelas Ordenações facilitava a administração das colônias, ao mesmo tempo que reforçava os direitos da Coroa e da Igreja, dois pilares fundamentais da estrutura de poder no período.

Estrutura e objetivos das Ordenações Filipinas

As Ordenações Filipinas tinham como objetivo principal reunir e ordenar as leis vigentes, muitas das quais se encontravam espalhadas e de difícil acesso, sendo aplicadas de maneira inconsistente. A compilação visava, portanto, à facilitação do entendimento e da aplicação das normas jurídicas em um reino que, além do território europeu, incluía possessões ultramarinas em diversos continentes. O código, com sua clara intenção de uniformizar a legislação, procurava garantir que as leis fossem compreensíveis e aplicáveis em todo o território do Império Português.

As Ordenações se dividiam em cinco livros, cada um abordando áreas distintas do direito e da administração pública:


1. O Livro I tratava dos assuntos administrativos e do funcionamento da justiça, abordando as atribuições dos magistrados e funcionários públicos. Era responsável por definir a organização do Estado e suas relações com os súditos.

Exemplo:

TÍTULO LXV

Dos Juízes Ordinários e de Fora

1. Os juízes ordinários e os de fóra, que Nós mandarmos nomear, devem trabalhar nos julgamentos e termos, onde forem juízes, para que não ocorram malfeitorias e injustiças. Caso isso aconteça, devem providenciar a correção e proceder contra os culpados com diligência.

2. Os juízes ordinários devem portar varas vermelhas, e os juízes de fora, varas brancas, como é costume. Quando andarem pela vila, deverão portar essas varas, sob pena de quinhentos réis por cada vez que forem encontrados sem elas.

3. Os juízes ordinários, juntamente com os homens bons, têm o regimento da cidade ou vila. Ambos, ou ao menos um deles, deverão sempre comparecer às reuniões da Câmara para, junto com os demais, ordenarem o que considerarem para o bem comum, o direito e a justiça.

4. Onde não houver juízes dos órfãos, os juízes ordinários devem garantir e cumprir todo o regimento que foi dado especialmente ao juiz dos órfãos.


2. O Livro II cuidava do direito civil, regulando questões relacionadas à propriedade, contratos, heranças e outros direitos privados.

Exemplo: 

ALVARÁ DE 3 DE JUNHO DE 1809

Cria no Brasil o imposto da Sisa.

Eu, o Príncipe Regente, faço saber aos que este Alvará com força de Lei virem, que sendo necessário e forçoso estabelecer novos impostos, para, nas urgentes circunstâncias em que se acha o Estado, poder suprir-se às despesas públicas que se têm acumulado, não podendo bastar os rendimentos que havia, e que eram apropriados a outros fins, e à mais moderada precisão. E convencido da utilidade dos que são já conhecidos desde o princípio da Monarquia, e que merecem preferência por serem menos gravosos, e por terem método de arrecadação mais suave, e aprovado pela prática e experiência.

E tendo estas conhecidas vantagens as compras e vendas, e, maiormente, por se pagar em ocasião menos penosa, e quando se transfere o domínio, desejando gravar o mínimo possível o livre giro das transações dos meus fiéis vassalos no tráfico ordinário da vida civil, para que, no uso do direito de propriedade, tenham a maior liberdade, que for compatível com o interesse da Causa Pública: tendo ouvido o parecer de pessoas doutas e zelosas do Meu Real Serviço, sou servido determinar o seguinte:

1. De todas as compras, vendas e arrematações de bens de raiz que se fizerem em todo este Estado e Domínios Ultramarinos, se pagará Sisa para a Minha Real Fazenda, que será de dez por cento do preço da compra, sem que desta contribuição se entenda isenta pessoa ou corporação alguma, por mais isenta ou privilegiada que seja, a que intervier em semelhantes contratos; em conformidade do que se acha estabelecido nos Alvarás de 21 de outubro de 1796 e de 8 de junho de 1800.

2. Pagar-se-á também neste Estado no Brasil, para a Minha Real Fazenda, meia Sisa, ou cinco por cento do preço da compra e venda de escravos, entendendo-se todos aqueles que não são trazidos por compra feita aos Negociantes de escravos novos, e que entram pela primeira vez no país, transportados da Costa de África.


3. O Livro III abordava o direito criminal, incluindo a tipificação de crimes e suas respectivas punições.

Exemplo:

TÍTULO X

Do que é citado para responder em um mesmo tempo em diferentes Juízos, ou sendo chamado pelo Rei:

1. Se o réu for citado para comparecer em um mesmo dia perante diferentes juízes, que não são iguais – ou seja, quando um deles tem jurisdição sobre o outro por via de apelação, agravo ou simples querela – o réu deve comparecer primeiro perante o juiz de maior autoridade. Assim que terminar a audiência com esse juiz, deverá imediatamente comparecer perante o juiz de menor autoridade. Se os juízes perante quem o réu foi citado forem iguais, e as causas pelas quais ele foi citado também forem de igual importância, ficando a escolha a critério do réu, ele poderá decidir a qual dos juízes comparecerá primeiro. Após terminar a audiência com o primeiro juiz, deverá ir ao outro. Durante a audiência com o primeiro juiz, o réu não será considerado ausente no outro juízo para o qual foi citado. No entanto, se uma das causas for mais grave que a outra, o réu deverá comparecer primeiro no juízo da causa mais grave e, ao finalizar a audiência, deverá comparecer ao juízo da causa de menor importância.

2. Em qualquer caso, se o réu for citado para responder em um mesmo dia por duas ou mais causas perante um juiz, a requerimento de uma ou mais partes, ele comparecerá para responder por todas as causas. Caso não compareça, ou não envie procurador com poder suficiente, poderá ser considerado revel.

3. Se o réu for citado para responder em um mesmo dia em diferentes vilas ou concelhos, e a distância entre os locais for grande a ponto de não permitir seu comparecimento no mesmo dia perante ambos os juízes, ele deverá comparecer primeiro perante o juiz a quem for obrigado, conforme a regra já exposta. Deverá também enviar procurador ao outro juízo, podendo permanecer no primeiro juízo ou nomear procurador suficiente para ambos, conforme achar mais conveniente, desde que haja tempo suficiente, considerando a distância entre os locais.

4. Se, após ter sido citado para um juízo, o réu fizer algum contrato ou outro ato pelo qual seja citado para outro juízo no mesmo dia, ele será obrigado a responder ambas as citações. Caso não compareça a nenhum dos juízos ou não envie procuradores suficientes, poderá ser considerado revel no juízo onde não comparecer, pessoalmente ou por procurador com poderes suficientes, mesmo que as audiências concorram no mesmo horário.

5. Se alguém for citado para responder em um dia certo perante um juiz e, antes desse dia, for chamado pelo Rei, pela Rainha ou pelo Príncipe, deverá comparecer primeiro ao chamado real. Durante o tempo em que durar o chamado, sua viagem e o retorno, acrescidos de dois dias para repouso (caso a distância seja maior que vinte léguas; se for menor, terá direito a um dia), o réu não será obrigado a responder à citação judicial. Esse direito cessará quando terminar o tempo do chamado, e não será permitida fraude ou engano para se prolongar o tempo da ausência. Essa regra se aplicará somente quando o Rei, a Rainha ou o Príncipe estiverem fora do local onde o réu foi citado; de outro modo, ele deverá responder à citação. Quando o Rei desejar seu serviço, será providenciada a devida orientação sobre a citação.


4. O Livro IV tratava do direito processual, regulando o funcionamento dos tribunais e os procedimentos judiciais a serem seguidos nos julgamentos.

Exemplo:

TÍTULO LVIII 

Dos que tomam forçosamente a posse de uma coisa que outra pessoa possui:

1. Se alguma pessoa, sem ter sido previamente citada e ouvida pela justiça, forçar ou esbulhar outra da posse de uma casa, herança ou qualquer outra posse, o agressor perderá o direito que poderia ter sobre a coisa tomada à força. Esse direito será adquirido e transferido para o esbulhado, que deverá ser imediatamente restituído à posse da coisa.

2. Se o agressor não tiver direito sobre a coisa em que fez a força, deverá pagar ao esbulhado o valor correspondente ao bem, além de todas as perdas e danos que ele tenha sofrido em consequência da força aplicada. Mesmo que o agressor alegue ser o proprietário ou ter algum direito sobre o bem, essa justificativa não será aceita, e ele será obrigado a devolver a posse ao esbulhado, além de perder qualquer direito que tivesse sobre a coisa por ter agido por sua própria força, sem autoridade legal.

3. A pena para o agressor, além da perda do direito sobre a coisa, será considerada em casos de força verdadeira. Se a posse da coisa for vaga, e o agressor a ocupar pensando ser alheia, mas depois descobrir que é sua, ele será admitido a provar, sumariamente, que a coisa lhe pertence.

4. O agressor terá quatro dias para provar, por escritura pública ou por testemunhas (nos casos em que nossas ordenações permitirem), que a coisa é sua. Se conseguir provar dentro desse prazo, será relevado da pena e de qualquer outra que couber no caso. No entanto, mesmo provando seu direito, o esbulhado será primeiro restituído à sua posse, e depois o agressor poderá litigar ordinariamente sobre a propriedade.

5. Se o agressor não conseguir provar dentro dos quatro dias que a coisa lhe pertence, perderá definitivamente o direito que alegava ter, sem direito a mais tempo para provar a posse.


5. O Livro V regulamentava a administração fiscal e as finanças públicas, incluindo a arrecadação de impostos e as obrigações fiscais dos súditos.

Exemplo:

Alvará de 16 de Janeiro de 1574

TÍTULO XII 

Dos que fabricam moeda falsa, ou a gastam, e dos que reduzem o valor da verdadeira ou a desfazem.

Moeda falsa é toda aquela que não é feita por ordem do rei, de qualquer maneira que seja fabricada, ainda que seja produzida com o mesmo material e formato da moeda verdadeira que o rei ordenou fabricar. Segundo o Direito, somente ao rei cabe o direito de fazer moeda, e a mais ninguém, independentemente de sua dignidade.

E por ser a moeda falsa algo extremamente prejudicial à República, e por merecerem grave punição aqueles que forem culpados, ordenamos que todo aquele que fabricar moeda falsa, ou der a isso apoio, ajuda ou conselho, ou que souber do crime e não o denunciar, será condenado à morte por fogo, e todos os seus bens serão confiscados para a Coroa do Reino.

1. Se a casa ou qualquer outra propriedade onde a moeda falsa foi fabricada não pertencer ao culpado no referido crime, também será confiscada, caso o dono da propriedade estivesse tão próximo da casa e tivesse tanta convivência com o culpado que, razoavelmente, se possa deduzir que deveria saber do crime. No entanto, se, ao tomar conhecimento do crime, o proprietário o denunciar ao rei ou à Justiça, não perderá a sua casa ou propriedade onde a moeda falsa foi feita, pois não consentiu com o delito.

2. Se o dono da casa ou propriedade estivesse tão longe no momento do crime que, verossimilmente, não poderia saber do delito, não perderá a referida casa ou propriedade. Porém, se a casa ou propriedade onde a moeda falsa foi fabricada pertencer a uma viúva ou a um órfão menor de quatorze anos, mesmo que estivessem tão próximos que, razoavelmente, deveriam saber do crime, não perderão a propriedade, a menos que se comprove que tinham conhecimento do delito, pois, nesse caso, não serão isentos da pena.

3. Em crimes de moeda falsa, ninguém gozará de privilégio pessoal, seja fidalgo, cavaleiro, cidadão ou qualquer outra dignidade semelhante, pois, independentemente de privilégios, será torturado e punido como qualquer pessoa comum, que não possua privilégios.

Atributos dos cargos públicos e a centralização do poder

Um dos aspectos mais notáveis das Ordenações Filipinas era a ênfase nas atribuições dos cargos públicos, refletindo o interesse da Coroa em fortalecer o controle sobre seus territórios. As funções dos magistrados, juízes e outros funcionários eram claramente definidas, e suas responsabilidades incluíam a aplicação da justiça, a arrecadação de tributos e a garantia da ordem pública. Essa centralização do poder, sob a autoridade do rei, era uma característica essencial do absolutismo, consolidando a autoridade monárquica e reduzindo a autonomia das elites locais.

Em terras coloniais, como o Brasil, a aplicação rigorosa das Ordenações Filipinas assegurava que os interesses da Coroa fossem protegidos. Os funcionários coloniais, como governadores e ouvidores, estavam encarregados de aplicar o direito português, garantindo que os súditos ultramarinos se submetessem às mesmas leis e ao mesmo sistema de justiça que os cidadãos do reino. Esse sistema ajudava a preservar o domínio metropolitano sobre as vastas e distantes colônias, mantendo um senso de unidade jurídica.

Bens e privilégios da Igreja

Outro ponto de grande relevância nas Ordenações Filipinas era o tratamento dado à Igreja e aos seus privilégios. A Igreja Católica desempenhava um papel central na estrutura de poder do período, sendo não apenas uma entidade religiosa, mas também um importante ator político e econômico. As Ordenações Filipinas reforçavam os direitos da Igreja sobre suas vastas propriedades, confirmando suas imunidades fiscais e concedendo-lhe prerrogativas jurídicas especiais.

O código também protegia os direitos eclesiásticos, como a autoridade dos bispos sobre os assuntos espirituais e o controle da Igreja sobre o matrimônio, o batismo e outras questões sacramentais. A Igreja era, portanto, uma instituição de grande poder dentro do regime jurídico estabelecido pelas Ordenações, desfrutando de privilégios consideráveis em áreas como propriedade, educação e assistência social.

Além disso, as Ordenações mantinham a aliança entre o poder régio e o poder religioso, refletindo a visão teocrática de que o rei governava por direito divino e que a Igreja era sua aliada no governo dos súditos. Isso reforçava a influência da Igreja não apenas nas questões espirituais, mas também nas questões políticas e econômicas.

Direitos dos reis e o absolutismo monárquico

As Ordenações Filipinas também reforçavam os direitos dos reis, garantindo que a autoridade real fosse reconhecida em todo o reino e em seus territórios ultramarinos. Sob a influência do absolutismo, o rei era visto como a fonte de todas as leis, e as Ordenações reafirmavam o caráter divino de seu poder. O monarca tinha o direito de legislar, administrar e julgar, e sua autoridade era incontestável.

Essa concepção de poder absoluto foi fortalecida com as Ordenações Filipinas, que consolidaram o controle da Coroa sobre as colônias, garantindo que as leis emanadas do trono fossem aplicadas em todas as partes do império. Os súditos, por sua vez, tinham o dever de obediência e submissão, e qualquer desafio à autoridade real era severamente punido.

O absolutismo, presente nas Ordenações, refletia a ideologia de que o rei estava acima de todas as instituições e que a estabilidade do reino dependia da centralização de poder nas mãos do monarca. Essa visão, que perdurou até o século XIX, configurava um Estado forte e centralizado, capaz de controlar as tensões internas e externas, inclusive nos territórios coloniais.


Administração fiscal e circulação da riqueza

Outro aspecto crucial das Ordenações Filipinas era a administração fiscal, abordada no Livro V. Este tratava da arrecadação de tributos e da organização das finanças públicas, estabelecendo as obrigações fiscais dos súditos e o controle estatal sobre as atividades econômicas. A legislação fiscal era essencial para garantir a sobrevivência do Estado e financiar as guerras, as expedições e a manutenção do vasto império.

As Ordenações também permitiam a circulação da riqueza dentro do império, garantindo que os tributos recolhidos nas colônias fossem enviados para a metrópole. Isso refletia o modelo econômico mercantilista, em que as colônias existiam principalmente para servir aos interesses econômicos da metrópole, fornecendo recursos naturais e riquezas.

A organização fiscal estabelecida pelas Ordenações ajudava a manter o fluxo de riqueza entre as diferentes partes do império, assegurando que os rendimentos provenientes da exploração colonial fossem utilizados para fortalecer o poder do Estado e consolidar a autoridade da Coroa. Esse sistema de arrecadação e redistribuição de recursos foi um dos pilares do império português, sustentando o seu vasto aparato administrativo e militar.

A influência das Ordenações Filipinas no Brasil

As Ordenações Filipinas também tiveram um impacto profundo no Brasil, onde permaneceram em vigor até 1916, quando foram finalmente substituídas pelo Código Civil Brasileiro. Durante mais de 300 anos, as Ordenações serviram como base para o sistema jurídico colonial e pós-colonial, moldando a administração da justiça e influenciando as relações sociais e econômicas.

No contexto brasileiro, as Ordenações Filipinas serviram para consolidar o controle português sobre a colônia, garantindo que as leis emanadas da metrópole fossem aplicadas de forma consistente. Além disso, as Ordenações regulavam o comércio de escravos, que era uma parte central da economia colonial, ao mesmo tempo que protegiam os privilégios da elite colonial e da Igreja.

A estrutura jurídica estabelecida pelas Ordenações Filipinas também perpetuou a hierarquia social existente na colônia, com a distinção clara entre as classes sociais, e as severas punições previstas para crimes cometidos pelos escravos e pelas camadas mais baixas da sociedade. A aplicação desigual da justiça era uma característica do sistema colonial, onde as elites tinham acesso a privilégios legais, enquanto as classes trabalhadoras e os escravos eram submetidos a punições rigorosas.

Além disso, as Ordenações Filipinas desempenharam um papel crucial na consolidação das instituições jurídicas brasileiras após a independência. Mesmo com a ruptura política entre Brasil e Portugal em 1822, o arcabouço legal das Ordenações permaneceu em vigor por quase um século, influenciando o desenvolvimento das leis e da administração pública no novo Estado brasileiro.

A análise das Ordenações Filipinas como reflexo da sociedade

A análise das Ordenações Filipinas permite uma compreensão profunda da sociedade portuguesa e colonial da época, revelando as ideias, as crenças e a estrutura de poder que permeavam o período. A legislação expressava os valores e interesses das classes dominantes e evidenciava como a circulação da riqueza, o controle do poder e a estrutura social estavam intimamente ligados ao regime político e econômico vigente. Ao mesmo tempo, as Ordenações Filipinas reforçavam a centralização do poder na Coroa e a subordinação das colônias aos interesses da metrópole.

Circulação de ideias, crenças e cultura

Além da organização política e econômica, as Ordenações Filipinas refletiam o contexto cultural e ideológico de Portugal e suas colônias. A aliança entre a Coroa e a Igreja Católica, por exemplo, revela o peso da religião na sociedade do Antigo Regime. A legislação sancionava práticas religiosas obrigatórias, como o casamento sob as normas eclesiásticas e a jurisdição da Igreja sobre questões de moral e herança. Essa confluência de poder político e religioso reforçava a dominação ideológica, garantindo que tanto as elites metropolitanas quanto coloniais mantivessem o controle sobre a população.

As Ordenações também delineavam as crenças e valores que deveriam ser reproduzidos, criando uma hierarquia social que sancionava a desigualdade e a servidão. A escravidão, por exemplo, era amplamente regulamentada, refletindo a importância desse sistema para a economia colonial. A legislação criminal tratava os escravos e as camadas mais baixas da população com extrema severidade, aplicando punições cruéis para crimes menores, enquanto as elites gozavam de privilégios e imunidades.

O sistema de privilégios também se estendia à nobreza e ao clero, que, além de seus direitos econômicos, eram protegidos por uma legislação que lhes conferia tratamento especial. Assim, as Ordenações legitimavam uma sociedade profundamente estratificada, em que as camadas superiores se beneficiavam da exploração das camadas inferiores.

O fim das Ordenações e seu legado

As Ordenações Filipinas permaneceram em vigor em Portugal até 1867, quando foram substituídas pelo Código Civil Português. No Brasil, seu legado se estendeu até 1916, com a promulgação do primeiro Código Civil Brasileiro. No entanto, mesmo após a sua substituição, o impacto das Ordenações Filipinas sobreviveu, principalmente nas tradições jurídicas e culturais das nações que as adotaram.

No Brasil, as bases do direito colonial e da estrutura de poder moldada pelas Ordenações continuaram a influenciar as instituições pós-coloniais, com muitos dos preceitos estabelecidos por esse código ainda perceptíveis nas práticas jurídicas e sociais. As desigualdades estruturais, o tratamento privilegiado das elites e a centralização do poder são legados diretos do sistema legal estabelecido pelas Ordenações.

Conclusão

As Ordenações Filipinas foram mais do que um simples conjunto de leis; elas representavam a estrutura de uma sociedade hierárquica, estratificada e centralizada, refletindo os interesses da Coroa, da Igreja e das elites. Seu impacto foi profundo e duradouro, moldando a forma como o poder era exercido e como a justiça era administrada tanto em Portugal quanto em suas colônias.

Mesmo com sua revogação formal, as influências das Ordenações continuaram a se manifestar, especialmente no Brasil, onde a legislação e as práticas jurídicas mantiveram a marca desse código por séculos. Ao analisar as Ordenações Filipinas, podemos compreender não apenas a evolução do direito e da administração pública, mas também as dinâmicas sociais e econômicas que moldaram o desenvolvimento de Portugal e de suas colônias. Essa análise revela como a legislação pode ser uma ferramenta de poder, capaz de perpetuar desigualdades e reforçar estruturas de dominação, além de ser um reflexo das crenças e ideologias de uma época.


Indicação de leituras:

●História do Direito Brasileiro por Carlos Fernando Mathias, Ibsen Noronha e Rui de Figueiredo Marcos

●História do Direito no Brasil por Antônio Carlos Wolkmer


Link para baixar os 5 livros das Ordenações Filipinas:

https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242733

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