A Revolta da Chibata: Uma Luta por Dignidade e Justiça
Ocorreu numa conjuntura histórica peculiar do país, durante o período da Primeira República Brasileira (1889-1930), um momento marcado pela ascensão do cafeicultura no cenário econômico, pelo predomínio político das elites agrárias e pelo autoritarismo dos governos oligárquicos. Nesse contexto, as desigualdades sociais e raciais eram profundas e as condições de vida da população negra e pobre eram extremamente precárias.
Conjuntura da Época: Desigualdades Sociais e Racismo Estrutural
No início do século XX, o Brasil era uma nação marcada por profundas desigualdades sociais e raciais. A abolição da escravidão em 1888 não trouxe consigo a verdadeira liberdade e igualdade para a população negra, que continuava marginalizada e subjugada às estruturas de poder dominadas pela elite branca.
Nesse contexto, as Forças Armadas brasileiras refletiam as mesmas desigualdades e injustiças presentes na sociedade. A Marinha, em particular, era composta em sua maioria por marinheiros negros e mestiços, recrutados principalmente entre a população mais pobre e marginalizada das grandes cidades litorâneas.
Motivos da Revolta: Condições Desumanas e Práticas Punitivas
Os marinheiros da Marinha brasileira enfrentavam condições de trabalho desumanas e eram submetidos a uma série de abusos e arbitrariedades por parte de seus superiores. Além das péssimas condições de alojamento e alimentação, os marinheiros eram frequentemente vítimas de castigos físicos, especialmente a chibata, uma prática cruel e desumana que consistia em açoitar os infratores como forma de punição disciplinar.
O jornalista Edmar Morel em seu livro clássico "A Revolta da Chibata " publicado em 1959, fruto de numa brilhante e criteriosa pesquisa acerca deste período, nos demonstra como a questão do recrutamento era tratado pela Marinha brasileira. Entender esta faceta é crucial, para compreender a revolta. Afirma Morel:
"João Cândido era o chefe supremo da insurreição, sendo o primeiro marinheiro no mundo, a comandar uma esquadra.
Foi um comandante diferente. Não usou a farda de almirante, preferindo o seu uniforme branco de praça-de-pré, meio rasgado pelo tempo.
Apenas, como distintivo, um lenço de seda vermelho ao pescoço, um apito e uma velha espada de abordagem.
Até meio século atrás ninguém ignorava que a Marinha era o espantalho a que recorriam os pais de familia para reformar o comportamento das crianças travessas. Os processos de recrutamento, em 1910, ainda eram os mesmos da época de Cochrane.
Nas levas periódicas do pessoal admitido na Marinha figurava gente da pior espécie: ladrões, assassinos, portadores das mais diversas taras etc., era o material humano que constituia parte da guarnicão dos navios. Ademais, em virtude de regulamentação errada, o marujo não podia dar baixa senão 15 anos depois de sua incorporação, de modo que muitos individuos perniciosos ou reincidentes em faltas disciplinares, embora punidos sucessivamente, eram mantidos até completarem o tempo exigido pela lei.
Governo tratou de modernizar a esquadra, mas não reformou a mentalidade dos marinheiros e o sistema de seleção dos mesmos, deixando em uso os processos do século passado.
Não havia, também, um principio para a escolha, o que provocava protestos, em particular, no Nordeste, onde os chefes de familia eram laçados e jogados no porão dos navios, enquanto o elemento jovem protegido fugia ao serviço militar.
Gustavo Barroso, da Academia Brasileira de Letras e diretor do Museu Histórico, um dos melhores cronistas da REVOLTA DA CHIBATA e das coisas da Marinha, biógrafo de Tamandaré, tendo feito a cobertura da revolta de João Cândido para o "Jornal do Commercio," trabalho que valeu o seu ingresso, em caráter definitivo, no órgão de Félix Pacheco, escrevendo em "O Cruzeiro", sobre os recrutamentos para a Marinha e o Exército no Primeiro Reinado, revelou as barbaridades inconcebíveis praticadas contra indefesos, tudo isto em nome da civilização, escrevendo:
"O ilustre historiador cearense Ismael Pordeus, em longo estudo publicado parceladamente na imprensa de Fortaleza,
documentou de modo completo a situação do menor desvalido na Província do Ceará ao tempo do Império. Investigando os arquivos com êsse propósito, encontrou papéis que nos dão conta da barbaridade com que eram feitos os recrutamentos
no século passado, sobretudo quando das guerras que, na sua primeira metade, travamos nas fronteiras meridionais. Assim, para guarnecer os navios da Esquadra criada na Independência, a seguir empregada nas operações do Rio da Prata, devido à guerra da Cisplatina, o Govêrno Imperial lancou mão de menores, segundo o conselho de Lord Cochrane de que "para criar marinha efetiva são preferiveis os moços de 14 a 20 anos."
A Revolta da Chibata foi motivada, em grande parte, pela indignação dos marinheiros diante dessas condições degradantes e pelas injustiças a que eram submetidos diariamente. Além disso, a promessa não cumprida de abolição da chibata pelo governo republicano intensificou o sentimento de revolta e insatisfação entre os marinheiros.
Desencadeamento e Desenvolvimento da Revolta
Em 22 de novembro de 1910, João Cândido Felisberto liderou um grupo de marinheiros rebeldes a bordo do encouraçado Minas Gerais, ancorado na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. O grupo exigiu o fim dos castigos físicos e a melhoria das condições de trabalho e de vida dos marinheiros, além do reconhecimento de suas reivindicações pelo governo brasileiro.
A revolta rapidamente se espalhou para outros navios da Marinha, incluindo o encouraçado São Paulo e o cruzador Bahia. Os marinheiros rebeldes, liderados por João Cândido, mantiveram o controle dos navios durante vários dias, desafiando a autoridade do governo e causando pânico entre as elites políticas e militares do país.
No dia 24 de novembro de 1910, o relevante periódico carioca, Correio da Manhã, na figura de seu redator chefe, Gil Vidal, escreveu o seguinte editorial acerca da revolta:
"A REVOLTA
A impressão produzida na população do Rio de Janeiro na noite de anteontem para ontem, quando disparados os primeiros tiros da esquadra soblevada, foi de surpresa e de dor.
De sarpresa, porque nada fazia prever aquele acontecimento; não se imaginava que a indisciplina das nossas tropas de mar, quando se exaltava a todo o momento a nossa regeneração naval, estivesse em tal decadência a poto de se apoderarem dos seus navios, matando comandantes e oficiais para com os seus canhões e metralhadoras imporem condições humilhantes ao governo, de cuja aceitaçao tornou dependente o não bombardeio da cidade, com sacrificio de toda a sua população. Foi de dor e vergonha ainda a impressão, porque se reabriu no país uma nova série de motins militares, dos quais parecia já estarmos para sempre livres. Fossem quais fossem as causas do levante, não há como justificá-lo e atenuar o desastroso efeito, para o nosso crédito e renome de nação civilizada, dele resultante.
A nação toda condena a revolta.
A nação está toda ela ao lado do presiente da República para o restabelecimento da ordem pública e da disciplina na Armada. Diante desse gravíssimo sucesso desapareceram as dissensões politicas.
Todos os resentimento da campanha presideacial calaram-se. Na Câmara dos Deputados, tanto maioria como a minoria, fizeram protestos solenes de sua união e solidariedade com o presidente da República deste momento. Ao Senado, desistindo do resto de licença de que estava em gozo, correu pressuroso e preclaro chefe do civilisnto para prestar o preciosíssimo apoio de sua palavra e de seu voto ao gorerno do seu antagonista.
Esse movimento de tados os homens públicos, colocando-se sem vacillaçoes em hesitações ao lado do governo acompanhado da reprovação que a rerolta infligiram todas as camaadas da população, honra a nação brasileira.
Mostra a sua adiantada cultura e atesta seu espírito essencialmente conservador. Não encontra, portanto, o governo do marechal Hermes embaracos à sua ação e, firme e decisiva, esperamos vê-la em breve coroada de êxito voltando o país a sua vida normal restituindo a paz e a tranquilidade necessárias ao seu desenvolvimento e pregresso.
Felizmente as indagações minuciosas a que procedeu o gorerno provam que se trata somente de uma insurreição da maruja, insurreição em que não tem participação nenhum elemento a ela estranho, participação por qualquer modo, até por instigação ou conselho. A exploração política, no que aliás um só momento, cumpre registrar, não pensou o governo, tornou-se impossível.
Deste modo a ação do governo se exercerá com toda a liberdade, inteiramente isenta da suspeita de obedecer a outro móvel que não o cumprimento iniludível de restabelecer a ordem e restaurar a disciplina entre as forças de mar. Por mais dolorosa que se afigurem ao governo as consequências de algumas resoluções, indispensáveis para que ele saia vencedor nessa luta, a que foi levado pelo desvairamento e loucura de alguns marinheiros não tem ele que recuar diantes delas. E só mais tarde, quando dominada a revolta, poderá então o governo examinar a justiça das reclamações dos revoltosos atendê-las quando realmente se apoiarem na lei e a patrocinarem os deveres de humanidade."
O jornal posissionou-se com veemência contra o que se chamou à época de "Revolta dos Marinheiros", demonstrando apoio ao presidente Marechal Hermes. Também chama atenção na opinião deste periódico o elevado tom condenatório, clamando aos políticos, mesmo àqueles de oposição, para o restabelecimento da ordem na então capital da República.
Consequências e Repressão
A Revolta da Chibata foi brutalmente reprimida pelas autoridades brasileiras. Após intensas negociações e pressões políticas, o governo cedeu às demandas dos marinheiros rebeldes e prometeu abolir a prática da chibata na Marinha. No entanto, após a rendição dos marinheiros, o governo do presidente Hermes da Fonseca traiu suas promessas e ordenou a prisão e o julgamento dos líderes da revolta.
João Cândido e outros líderes foram julgados sumariamente e condenados à prisão perpétua, enquanto centenas de marinheiros foram punidos e expulsos da Marinha. A maioria dos presos não resistiu às condições degradantes do cárcere, ainda na Ilha das Cobras, e morreram no cumprimento da pena. A repressão brutal da revolta demonstrou a disposição do governo em manter o status quo e reprimir qualquer tentativa de resistência e protesto por parte dos oprimidos. O Almirante Negro serviu na Marinha por 19 amos. Quando deixou a prisão, estava em frangalhos, era um arremedo humano. Seus pulmões haviam sido comprometidos pela tuberculose que contraiu no período da prisão. Não tinha sequer roupas descentes para vestir e voltar ao convívio da sociedade.
Significado Histórico da Revolta da Chibata
A Revolta da Chibata teve um significado profundo e duradouro na história brasileira. Este evento destacou a luta dos marinheiros negros e mestiços contra a opressão e a injustiça, e evidenciou as contradições e desigualdades presentes na sociedade brasileira da época. Uma espécie de continuação do escravismo.
Além disso, a Revolta da Chibata teve um impacto significativo na consciência política e social do país, inspirando movimentos e organizações que lutavam pelos direitos dos trabalhadores e pela igualdade racial. O Almirante Negro, João Cândido Felisberto, tornou-se um símbolo de resistência e dignidade, lembrado até hoje como um herói da luta contra a opressão e a injustiça no Brasil.
• No ano de 1974, em plena ditadura militar brasileira (1964-1985), a música "Mestre Sala dos Mares", de Aldir Blanc e João Bosco, cantada magistralmente por Elis Regina, foi um marco não somente como trazer para a memória popular o destaque histórico da Revolta da Chibata, mas também um protesto contra as arbitrariedades (prisões ilegais, torturas e mortes) causados no período. É uma composição que evoca elementos históricos, culturais e sociais do Brasil, utilizando uma linguagem poética e simbólica. A letra da música apresenta uma narrativa que faz referência a eventos e figuras marcantes da história brasileira, enquanto celebra a diversidade cultural e a resistência do povo brasileiro.
O trecho: "Há muito tempo nas águas da Guanabara o Dragão do mar reapareceu", faz uma alusão a João Cândido como se fosse a reencarnação de Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, conhecido como Dragão do Mar. Líder dos jangadeiros, ele ficou famoso por comandar o movimento abolicionista no Ceará em 1883 e teve atuação decisiva na proibição do tráfico negreiro na região. Na figura de um bravo feiticeiro/A quem a história não esqueceu /Conhecido como o navegante negro" lembra novamente a João Cândido. As "rubras cascatas" é a representação do sangue que corria pelas costas dos que receberam chibatadas.
A referência à Guanabara, ao porto e às regatas remete à cidade do Rio de Janeiro e à sua importância histórica como centro econômico e cultural do Brasil. O "mestre-sala" mencionado na música é uma figura tradicional do carnaval brasileiro, que lidera o desfile de uma escola de samba, trazendo à tona elementos da cultura popular e festiva do país.
A letra da música também faz uma homenagem às "mulatas", "sereias", "piratas", "cachaça" e "baleias", elementos que fazem parte do imaginário brasileiro e representam a diversidade étnica, cultural e natural do país. Ao mencionar "todas as lutas inglórias que através da nossa história não esquecemos jamais", a música reconhece a importância de lembrar e valorizar os momentos de resistência e luta por justiça social na história do Brasil.
A conexão com a Revolta da Chibata pode ser estabelecida através da temática de resistência e luta pela liberdade presente na música. Assim como o "navegante negro" representado na música, os marinheiros rebeldes da Revolta da Chibata lutaram contra a opressão e os abusos na Marinha brasileira, buscando melhores condições de vida e o fim da prática cruel da chibata. Ambos os eventos são exemplos de resistência popular e luta por direitos humanos e justiça social na história do Brasil.
Em suma, a música "Mestre Sala dos Mares" é uma obra que combina elementos históricos, culturais e sociais para celebrar a diversidade e a resistência do povo brasileiro, enquanto faz referência a figuras e eventos marcantes da história do país, como o Dragão do Mar e a Revolta da Chibata.
A letra:
Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu
Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar, na alegria das regatas
Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas
Rubras cascatas
Jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro, gritava então
Glória aos piratas
Às mulatas, às sereias
Glória à farofa
À cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento as pedras pisadas do cais
Mas salve
Salve o navegante negro
Que tem por monumento as pedras pisadas do cais
Mas faz muito tempo
Indicações de leitura:
• O Negro da Chibata por
Fernando Granato
• A Revolta da Chibata por
Edmar Morel
• João Cândido e os navegantes negros: A Revolta da Chibata e a segunda abolição por Sílvia Capanema
Pertinente para este momento. O texto está muito bem articulado!
ResponderExcluir