O doutor Azambuja no alto do Castelo
O doutor Azambuja, em seus cinquenta e poucos anos de vida, acostumara-se a navegar pelos meandros das diferenças humanas. Entre a Santa Casa de Misericórdia, com seus corredores sempre cheios, e as residências elegantes do Flamengo, onde atendia senhoras nervosas e cavalheiros de saúde delicada, movia-se com a paciência de quem conhecia as limitações do corpo e da alma. Mas nada o preparava para uma manhã no Morro do Castelo. Subiu a colina especialmente para uma visita singular, a vovó Maria D’Angola, lendária parteira e mandingueira do morro. Não era a primeira vez que o nome daquela senhora atravessava seus ouvidos; ao contrário, circulava pela cidade como uma espécie de entidade mítica, mistura de benfeitora e feiticeira.
Com passos calculados, subiu pela Ladeira da Misericórdia. A subida, castigada pelo sol e pela irregularidade das pedras tipo pé de moleque, era mitigada pela vista: lá embaixo, a Baía de Guanabara reluzia como um espelho quebrado, cada pedaço refletindo um fragmento de beleza.
— Ah, doutor! — disse-lhe o sacristão ao vê-lo parar na Igreja de Santo Inácio. — Hoje decidiu se aventurar nas alturas?
— Aventuras nunca faltam, meu caro. Mas há certas alturas que têm mais mistérios que perigos.
O sacristão riu, abanando-se com o chapéu.
— Vai ver vovó Maria?
— Sim. Me aguarda a celebridade do Castelo.
— Então vá preparado, doutor. Ela cura de tudo, mas sempre manda a conta: ou em bênção, ou em conselho.
Azambuja acenou, riu da advertência e seguiu em frente.
Quando alcançou a casa de vovó Maria D’Angola, foi recebido por uma cena de vida simples e vibrante. A velha parteira, pequena e curvada, remexia um pilão com destreza. Um cheiro forte de ervas e fumaça tomava o ar, enquanto galinhas ciscavam ao redor de uma pilha de roupas secando ao sol no terreiro.
— Entre, doutor! — disse ela, sem levantar os olhos do que fazia. — Já me disseram que o senhor vinha.
Azambuja parou no meio do pátio, surpreso.
— Já disseram? Quem?
Ela levantou o olhar, com um brilho travesso nos olhos.
— Ora, doutor, quem precisa dizer? O vento traz notícias, e os passarinhos completam.
O médico sorriu, ajustando o chapéu.
— Pois aqui estou. Venho cumprir meu dever, examinar sua saúde. Mas parece que a senhora está em perfeita forma.
Vovó Maria riu, revelando seus dentes faltantes, uma magistral banguela.
— Saúde minha, doutor? Ou o senhor veio atrás das minhas ervas milagrosas?
— Quem sabe das duas coisas? — rebateu Azambuja, entregando-se à conversa.
Ela o convidou a sentar em um tamborete. Ele puxou sua bolsa de médico, mas ela o interrompeu com um gesto.
— Antes de mexer nas suas ferramentas, doutor, precisa provar meu café. É forte como a vida no morro.
Azambuja aceitou a xícara pequena e fumegante que ela lhe ofereceu. O sabor era amargo, mas tinha um calor que não vinha apenas da temperatura.
— E então? — perguntou ela, fitando-o com curiosidade.
— É... peculiar.
— Peculiar é o que a gente chama de "bom" quando não quer admitir.
O doutor riu, e a conversa seguiu leve enquanto ele iniciava o exame. Colocou o estetoscópio em seus ouvidos e auscultou o peito da velha.
— Respire fundo.
Ela obedeceu, mas depois de três respirações parou.
— Chega, doutor. Meu pulmão já soprou muito fogo por aí. O senhor não vai encontrar nada novo.
— É o meu trabalho, dona Maria. Preciso garantir que está bem.
— Bem? Bem, doutor, eu estou há mais tempo do que devia. Já enterrei quem devia me enterrar.
Azambuja guardou o estetoscópio e decidiu não insistir.
— Diga-me, quantos partos a senhora já realizou?
Ela apertou os olhos, pensando.
— Ah, doutor, já perdi a conta. A metade do morro saiu dessas mãos aqui. E os outros vieram porque eu ajudei os pais a se animarem.
O médico arqueou as sobrancelhas.
— Animarem?
— Minhas garrafadas, doutor! O senhor não conhece?
Ele sorriu.
— Apenas de ouvir falar. Dizem que até o velho Fugêncio, com mais de oitenta anos, foi pai de gêmeos, dois meninos, depois de experimentar uma delas.
— Foi mesmo. E ainda vem aqui pedir mais. Homem teimoso! Mas me diga, o senhor quer uma garrafada também?
— Eu? Não, não... Estou aqui como médico.
Ela balançou a cabeça, desconfiada.
— Doutor, todos somos pacientes de alguma coisa. A saúde do corpo é só uma parte. Quer saber? Vou preparar uma mistura para o senhor.
Enquanto ela desaparecia dentro do casebre, Azambuja sentiu-se envolto pelo som e pela vida do lugar. As crianças corriam na rua estreita, gritos e risadas ecoavam, e os cheiros das casas — feijão, lenha e ervas — se misturavam no ar.
Maria voltou com uma garrafa escura.
— Tome um gole por dia, doutor. Não precisa me contar o resultado, mas vai me agradecer.
Ele aceitou a garrafa com um sorriso.
— Não sei se preciso disso, mas, pelo menos, terei algo para lembrar deste dia.
— Vai lembrar mesmo. As minhas garrafadas não deixam ninguém esquecer.
Antes de partir, Azambuja quis agradecer mais uma vez, mas Maria o interrompeu.
— Doutor, o senhor é homem de ciência, mas vive aqui em cima das dúvidas. Isso é bom. Só não se esqueça: tudo tem cura, menos a falta de fé. Fé em quê, o senhor decide.
Azambuja ficou em silêncio por um momento, refletindo sobre a sabedoria inesperada da velha.
Despediu-se e seguiu para o Observatório Nacional, onde encontrou seu amigo, o professor Januário Antunes, absorto em cálculos.
— Azambuja! Veio se juntar aos astros?
— Mais ou menos, Januário. Passei pela ciência da terra antes de vir à ciência dos céus.
O físico riu, ajustando os óculos.
— Este morro guarda mais sabedoria do que parece. Mas e a vovó Maria, o que lhe deu?
— Uma garrafada, para variar. Diz que é milagrosa.
— E vai experimentar?
Azambuja deu de ombros.
— Talvez. Afinal, o que tenho a perder?
Antes de descer, parou no botequim ao lado do Portão da Fortaleza e encontrou o sargento Vicente, já com um copo à mão. O veterano militar vivia de cortar e gabar-se de suas histórias nos tempos da caserna.
— Doutor! O senhor anda por onde?
— Por onde me chamam, sargento. E o senhor, como está?
— Vivo, o que já é uma vitória depois de Canudos.
Os dois conversaram, e Vicente contou histórias do campo de batalha, enquanto Azambuja pensava nos cortiços e na vida dura do morro.
Quando enfim desceu a Ladeira do Colégio, sentiu-se carregando não apenas a garrafada de Maria, mas também as palavras dela, do sargento e de Januário. A ciência, a fé e as mandingas conviviam apertadas no morro — e talvez no mundo —, sustentando, à sua maneira, a vida em seus mistérios.
De passo lento, descia o Morro do Castelo com sua inseparável maleta de couro. O final da manhã, ainda envolta no cheiro de maresia, tingia de ouro pálido os contornos dos antigos camarões e casebres que pendiam precariamente. Seus olhos, exaustos pelas visitas, se detinham não nas pedras da ladeira, mas na paisagem que a miséria humana ali pintava com cores desbotadas. Era um quadro que, aos olhos do doutor, parecia mais pungente à luz da recente proclamada e propalada República.
Ao alcançar a base do morro, deteve-se por um instante, voltando o olhar ao topo. Não via o Morro do Castelo como um simples pedaço de geografia urbana, berço da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, mas como um símbolo das ruínas humanas escondidas atrás das fachadas gloriosas da nova ordem. A República — essa entidade jovem e altiva que tanto prometera — já parecia desviar o olhar dos que precisavam dela. Coisa envelhecida. Os "camarões", como chamavam aquelas pequenas e frágeis moradias, estavam longe das preocupações de quem agora ocupava os salões do poder.
Azambuja pensava nos homens e mulheres que atendia constantemente: rostos consumidos pelo esforço incessante, corpos marcados pela carência de tudo, e esperanças enterradas na lama dos becos. Uma jovem que ele cuidara, febril e alquebrada, vivia em um espaço onde o ar era abafado pelo mofo das paredes. "E que República é essa", murmurou, "que tem olhos apenas para o largo esplendor das avenidas e esquece os corredores sombrios onde a vida mal se sustenta?"
A precariedade que via não era nova. Mesmo sob o Império, o morro sempre fora morada dos desvalidos, dos invisíveis. Contudo, a República prometera um futuro de igualdade e cidadania. Azambuja, que em sua juventude acreditara nesses ideais, agora sentia o peso da desilusão. A República se desenhava como uma senhora de vista curta, preocupada em embelezar o cenário para os olhos estrangeiros, enquanto a podridão interna era varrida para baixo do tapete dos morros.
Ao atravessar a Rua da Misericórdia, pensou na ironia daquele nome. "A Misericórdia morreu", refletiu. "E em seu lugar, instalamos um regime que bate palmas às elites e deixa os pobres a mendigar aos pés do progresso." Naquele instante, sentiu-se pequeno diante da grandeza da tarefa que sua profissão lhe impunha: remediar, dia após dia, os efeitos de uma estrutura que parecia nascer deformada.
O Morro do Castelo, à distância, já não era uma paisagem. Era um grito silencioso, um lembrete incômodo de que os fundamentos da República não podiam se sustentar sobre a indiferença aos mais vulneráveis. Azambuja apertou a maleta contra o corpo, como se nela estivesse a cura para uma doença maior que febres e dores — a doença da negligência humana. Ao retomar o caminho, pensava não no próximo paciente, mas no que ainda poderia ser feito para que a República fosse, de fato, para todos. Ordem e Progresso?
Imagens: 1- Doutor Azambuja; 2- Ladeira da Misericórdia, 1917, autor não identificado; 3- Igreja dos Jesuítas, 1918, por Augusto Malta; 4- Panorama do Rio de Janeiro tomado do Morro do Castelo, 1885, por Marc Ferrez; 5- Largo da Igreja de São Sebastião, 1921, por Augusto Malta; 6- Morro do Castelo, 1921, por Augusto Malta; 7 - Praça do Morro do Castelo, 1921, por Augusto Malta.
Nota: Todas as imagens fazem parte do acervo do Instituto Moreira Salles. Disponíveis em:
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/
Para apreciar a leitura ouça:
Muito bom , a desigualdade ela é marcante em todas as épocas . Haverá sempre alguém olhando com o cuidado de um mundo melhor para todos , mas nem mesmo a vontade e a coragem de mudar supera o dinamismo de um progresso egoista e desumano.
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