Os hábitos do doutor Azambuja: uma crônica carioca
O sol de setembro resplandecia timidamente sobre o Rio de Janeiro naquela manhã, derramando uma luz suave pelas ruas estreitas do centro da cidade. O doutor Azambuja, homem de figura imponente, médico de renome, caminhava pela rua dos Mercadores com um ar de satisfação discreta. Era um homem de hábitos precisos, cuja vida se movia numa cadência quase litúrgica. Como todos os domingos, dirigia-se à Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores para assistir à missa, seguido de um ritual igualmente sagrado: um encontro com os amigos na Confeitaria Colombo.
A rua dos Mercadores estava viva com o barulho dos comerciantes e o murmúrio das conversas. Sobrados antigos, com suas varandas de ferro forjado, formavam uma muralha ao longo do caminho, observando impassíveis o desfile diário de cidadãos. Entre um pensamento e outro, Azambuja notou ao longe o Conselheiro Athaíde, um velho amigo e confidente de seus dias na faculdade de medicina, que caminhava em direção oposta.
— Doutor Azambuja! — saudou o conselheiro, com um leve sorriso emoldurado por sua barba grisalha. — Também a caminho da missa?
— Como todos os domingos, Conselheiro — respondeu Azambuja, apertando-lhe a mão. — Não podemos abandonar as boas tradições, mesmo que a fé já não seja tão fervorosa.
— O hábito tem mais força do que qualquer outra devoção — replicou o Conselheiro, com uma pitada de ironia.
Azambuja despediu-se com a promessa de reencontrá-lo mais tarde na Colombo e seguiu para a igreja. Ao entrar, sentiu-se envolto pelo cheiro de incenso e pela familiaridade da liturgia. A missa era uma pausa necessária no ritmo de sua vida, não tanto pelo seu caráter espiritual, mas pelo que representava de estabilidade em meio ao caos das demandas de sua profissão.
Depois de cumprida a cerimônia religiosa, saiu do templo para encontrar os amigos na Colombo, onde sabia que o aguardavam. A Confeitaria, sempre um ponto de encontro dos mais ilustres da cidade, estava já cheia, mas sua mesa de costume, num canto discreto, permanecia intacta. Lá estavam o Conselheiro Athaíde, o desembargador Simão Pedro, um homem severo com traços duros, e Lafaiete de Moraes, o escritor romancista e poeta, que aspirava ardentemente a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
— Doutor Azambuja, sempre pontual! — saudou o desembargador, levantando a xícara de café. — Como vai a nossa medicina?
— A medicina vai bem, obrigado, mas os pacientes, nem tanto. Sinto que quanto mais ricos, mais complicados. Se eu contasse as doenças que me relatam, as mais escabrosas condições... deixaria até o Cardeal Arcoverde de cabelos em pé!
Todos riram, mas havia um fundo de verdade nas palavras do médico. Azambuja, em sua longa carreira, tratava tanto a fina flor da sociedade carioca quanto os mais humildes na Santa Casa de Misericórdia. Conhecia, por isso, os extremos de uma cidade partida entre a opulência e a miséria. Se por um lado tratava das damas e cavalheiros da alta sociedade em suas mansões, onde as doenças eram tanto físicas quanto morais, por outro, conhecia a dura realidade dos pobres, cuja saúde era corroída pela fome, pela falta de higiene e pelo abandono.
O Conselheiro Athaíde, sempre atento às nuances das conversas, sorriu.
— Meu caro Azambuja, você está na posição singular de conhecer o corpo e a alma desta cidade. Como são as nossas elites quando expostas ao bisturi?
Azambuja deu um sorriso de lado, hesitando apenas por um segundo.
— A verdade, Conselheiro, é que por trás de cada fachada imponente, cada mansão repleta de luxos, escondem-se segredos que dariam material para vários romances. Os males que me confidenciam... ah, se Machado de Assis ouvisse o que ouço!
Nesse momento, Lafaiete de Moraes, que até então estivera mais calado, endireitou-se na cadeira. Ele era conhecido por sua habilidade de se manter próximo dos círculos literários e políticos, especialmente quando envolvia o grande Machado de Assis, a quem admirava publicamente, mas a quem muitos acusavam de bajular em sua incessante busca por uma cadeira na Academia.
— Se me permite dizer, doutor Azambuja, são justamente essas histórias ocultas que me fascinam. As enfermidades da alma são muito mais interessantes do que as do corpo — comentou Lafaiete, num tom pretensamente profundo. — Machado, claro, tem o dom de captar essas nuances como ninguém. Ele é uma inspiração para todos nós, não é mesmo?
O Conselheiro Athaíde lançou um olhar cúmplice para Azambuja, que entendeu imediatamente o tom forçado do comentário de Lafaiete. Todos sabiam que o romancista e poeta desejava ardentemente o reconhecimento da Academia, e sua admiração por Machado, embora genuína, tinha contornos de uma devoção estratégica.
— Sem dúvida, Lafaiete — respondeu Azambuja, mantendo o tom cordial, mas com uma leve ironia no olhar. — Nosso Machado é uma lenda viva. Mas me diga, como andam seus projetos literários? Ainda escrevendo aquele romance sobre a decadência da aristocracia?
Lafaiete sorriu, satisfeito por terem mencionado sua obra.
— Sim, sim, estou a finalizar. É um trabalho árduo, mas recompensador. Espero que a Academia aprecie.
O desembargador Simão Pedro, sempre mais prático e direto, cortou o devaneio literário com uma questão mais urgente.
— E a política? Temos eleições próximas, e a situação não está nada fácil. Estão dizendo que o país segue por um caminho perigoso.
— Ah, a política, sempre um romance de capítulos intermináveis e mal escritos — comentou Azambuja, em tom filosófico. — Mas confesso que, por vezes, prefiro os dramas particulares dos meus pacientes às tragédias nacionais. Pelo menos os primeiros me pagam bem por meus diagnósticos.
A conversa continuou, os temas variando entre literatura, política e as fofocas dos círculos sociais. Azambuja observava seus amigos com um misto de afeto e distância crítica. Conhecia-lhes as manias e ambições, sabia que todos estavam presos em seus próprios papéis, como personagens de uma peça que já fora ensaiada inúmeras vezes.
Depois de mais um café e alguns biscoitos, Azambuja se levantou, alegando compromissos. Havia ainda um chapéu novo para comprar na rua do Ouvidor, sapatos para engraxar na rua Buenos Aires e o terno de linho para buscar na alfaiataria da rua do Rosário. Os amigos se despediram, cada qual imerso em suas próprias preocupações.
A rua do Ouvidor fervilhava de vida, com seus vendedores ambulantes, lojistas franceses e ingleses entre suas vitrines de luxo passavam todo tipo de transeuntes. Azambuja caminhava com calma, como quem flanasse observando essas vitrines chamativas. Adentrou numa chapelaria onde comprou um belo chapéu de feltro. Na saída, enquanto admirava a peça nova, encontrou-se com o poeta Lafaiete de Moraes novamente, que parecia surgir a cada esquina como um espectro literário.
— Doutor, que bom encontrá-lo de novo! — exclamou o poeta, com seu sorriso constante. — Sabe, eu estava a pensar na nossa conversa de mais cedo. Aquelas histórias que mencionou sobre seus pacientes... seria fascinante incluir algo assim em um de meus próximos romances. Um médico que conhece os segredos da alta socisociedade.
Azambuja riu, mas havia algo no olhar de Lafaiete que o fez perceber o quão disposto o poeta estava a usar qualquer fragmento de conversa para seu próprio ganho.
— Cuidado, Lafaiete, segredos médicos são como espinhos: quem tenta colhê-los pode acabar ferido. Mas se deseja explorar os males da sociedade, há uma infinidade de outros caminhos.
Depois de mais algumas palavras trocadas, Azambuja seguiu seu caminho, sentindo o peso das expectativas e das ambições que rondavam seus amigos. Ele sabia que a cidade era um palco, e todos eles, de certa forma, estavam interpretando seus papéis com maestria, mas também com uma profunda angústia de fundo.
A tarde já ia adiantada quando Azambuja finalmente tomou o bonde na recém inaugurada Avenida Central, em direção ao Catete. Ao se acomodar no banco, abriu o jornal Correio da Manhã enquanto seguia viagem, sentiu o alívio de quem cumprira mais um dia de compromissos e rituais. Observava as ruas do Rio de Janeiro desfilando ao seu lado, as casas e as pessoas se movendo em uma dança que parecia imutável.
Chegando à sua casa na rua Pedro Américo, ele se sentou em sua poltrona favorita e permitiu que a paz da tarde o envolvesse. Refletiu sobre o dia, sobre as conversas e, principalmente, sobre a cidade que conhecia tão bem. Sabia que por trás das fachadas elegantes e das vidas aparentemente bem-sucedidas, existia uma outra verdade — uma que ele, como médico, conhecia melhor do que qualquer outro. E era essa verdade, não dita, que o fazia sorrir com um misto de melancolia e ironia ao fim de cada dia. Afinal, o doutor Azambuja era um homem que vivia entre dois mundos: o da elite carioca, com seus salões iluminados por candelabros e intrigas veladas, e o dos pobres desvalidos que, nas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia, lhe entregavam a vida nas mãos. Conhecia bem os dramas humanos em todas as suas formas, desde a aristocrata adoentada, cujas aflições eram tão psicológicas quanto físicas, até o operário exausto, cuja doença era produto da dura labuta e da falta de oportunidades.
Sentado em sua poltrona, com o novo chapéu repousando sobre a mesa e o terno de linho cuidadosamente pendurado, Azambuja acendeu o velho cachimbo, herança de seu avô que fora médico da corte portuguesa, revisitou mentalmente os encontros do dia. O Conselheiro Athaíde, sempre com uma observação afiada na ponta da língua, fazia-o pensar na política e naqueles que manejavam as rédeas do país como se fossem marionetes. O desembargador Simão Pedro, com sua sobriedade implacável, mostrava a face da justiça que, muitas vezes, não era mais do que uma fachada para interesses privados. E Lafaiete de Moraes, com sua obsessão por conquistar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, era o retrato da ambição intelectual que, de tão cega, muitas vezes se desvia da própria grandeza que busca alcançar.
Lafaiete, em particular, deixava Azambuja intrigado. Sabia que o poeta não media esforços para se aproximar de Machado de Assis, cultivando elogios e bajulações com uma intensidade que beirava o ridículo. Mas Azambuja também compreendia, com sua visão aguçada da natureza humana, que a vaidade literária não era menos perigosa que a política. A literatura, afinal, podia ser tão mortal quanto qualquer veneno prescrito por um médico imprudente.
"Se Machado ceder à sua lisonja", pensou Azambuja, "será um dia interessante de assistir." Não que ele duvidasse da solidez de Machado, mas até o mais nobre dos espíritos literários poderia se cansar de tantas pretensões e afagos vazios.
A noite começava a cair lentamente, e o bonde que passava pela rua levava consigo o som abafado do tilintar dos trilhos. Azambuja olhou pela janela e viu as luzes da cidade acendendo-se uma a uma, como pequenas fagulhas num vasto mosaico. O Rio de Janeiro, àquela hora, parecia outra cidade, coberta por uma calma aparente que mascarava as turbulências que ele tão bem conhecia.
Lembrou-se dos casos que o aguardavam no hospital na segunda-feira. Havia uma jovem da alta sociedade com um nervosismo inexplicável, que poderia muito bem ser a inquietação de um casamento arranjado; um fazendeiro com dores que, segundo seus servos, eram resultado de um “mau-olhado”, mas que Azambuja sabia serem produto de anos de abuso de álcool; e, no outro extremo da vida carioca, o caso de uma costureira tuberculosa que, entre um arremate de linha e outro, lutava para sustentar os filhos com o que restava de sua frágil saúde.
Ele se viu novamente diante da complexidade de sua profissão, uma que exigia tanto o domínio da ciência quanto a sensibilidade para entender o espírito humano. Não era apenas o médico que lidava com corpos enfermos, mas também o confessor involuntário de segredos inconfessáveis. Eram histórias que, se reveladas, poderiam abalar as colunas da cidade. Um visconde que padecia de males insuspeitados, uma baronesa que confiava a ele suas angústias mais íntimas, uma elite que, em sua própria decadência, revelava a hipocrisia do poder.
Suspirou profundamente, sentindo o peso de sua vocação. Havia dias em que o fardo da confidência era quase insuportável. E mesmo assim, ele sabia que voltaria, sempre voltaria. Havia algo no ato de curar — ou pelo menos tentar — que lhe dava um senso de propósito. Azambuja gostava de pensar que, no fim, sua prática médica era também uma forma de literatura. Ele lia os corpos e as almas, diagnosticando não apenas as doenças, mas as angústias e paixões que moviam seus pacientes.
Foi interrompido de seus devaneios pelo som familiar da porta sendo aberta. Era sua governanta, dona Celeste, uma senhora de meia-idade que há anos cuidava da casa com uma dedicação inabalável.
— Doutor, sua ceia está pronta. — Ela disse com um sorriso discreto. — Um caldo de galinha, como o senhor gosta.
Azambuja agradeceu com um aceno e levantou-se com certa preguiça da poltrona. A verdade era que a rotina, embora previsível, lhe trazia certo conforto. E aquela ceia simples, depois de um dia cheio de encontros e reflexões, era mais uma pequena pausa na vida que levava, entre o consultório, as ruas fervilhantes do Rio e os segredos que pairavam sobre todos como uma neblina.
Sentou-se à mesa e, enquanto sorvia o caldo, pensou no futuro. O país estava mudando rapidamente. As tensões políticas se intensificavam, os círculos intelectuais fervilhavam de ambição, e ele, o doutor Azambuja, continuaria a observar tudo com o olhar perscrutador de quem via a vida como uma narrativa inacabada.
Na manhã seguinte, voltaria aos corredores da Santa Casa, onde o destino da cidade lhe seria revelado não nos jornais ou nos salões, mas nos leitos de enfermaria, nos olhos febris dos doentes, nos sussurros de dor e, às vezes, nas confissões que eram feitas apenas a ele, o médico que sabia ouvir mais do que a simples batida do coração.
Por ora, contudo, permitiria que a noite o envolvesse e que a cidade adormecesse em sua calma ilusória. Amanhã, novos segredos surgiriam, novas histórias começariam, e ele estaria lá, como sempre, observando, curando e, quem sabe, escrevendo com seus diagnósticos a grande crônica não contada da vida carioca.
Nota: Para ilustrar a crônica nos seus ambientes e encontros, clica no link e ouça o choro "Vou vivendo" de Pixinguinha e Benedito Lacerda.
Amei! Fui transportada no tempo!
ResponderExcluirMaravilha de página, nos fazendo viajar no tempo. Parabéns 👏🏻 👏🏻 👏🏻
ResponderExcluirExcelente!! Uma leitura leve, despretensiosa, mas que nos traz conteúdo e reflexão. Amei!!😍👏
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