A Carta de Manden: Uma das Constituições Mais Antigas do Mundo e Seu Legado Contemporâneo
Introdução
No início do século XIII, no continente africano, após uma grande vitória militar, o fundador do Império Mandingo, Sundiata Keita, e uma assembleia de sábios proclamaram a Carta de Manden em Kurukan Fuga. Este documento, uma das primeiras declarações de direitos humanos e uma das constituições mais antigas do mundo, foi estabelecido em um território situado acima da bacia do alto rio Níger, entre as atuais Guiné e Mali.
Embora transmitida principalmente de forma oral, a Carta de Manden contém princípios fundamentais que defendem a paz social, a inviolabilidade da vida humana, a educação, a integridade territorial, a segurança alimentar, a abolição da escravidão por razzia (ataques violentos) e a liberdade de expressão e comércio. Mesmo após o desaparecimento do Império Mandingo, a Carta permanece viva na tradição oral dos clãs Malinke e é celebrada anualmente em cerimônias na aldeia de Kangaba, no Mali.
Este texto explora a origem histórica da Carta de Manden, seus princípios fundamentais, sua transmissão oral e ritualística, e seu impacto contemporâneo como fonte de direito e identidade cultural.
1. Contexto Histórico: O Império Mandingo e a Proclamação da Carta
1.1 A Ascensão de Sundiata Keita e a Fundação do Império:
O Império Mandingo, também conhecido como Império do Mali, surgiu no século XIII sob a liderança de Sundiata Keita, um líder carismático e estrategista militar. Após derrotar o tirano Sumanguru Kanté na Batalha de Kirina (1235), Sundiata unificou os reinos da região e estabeleceu um império que se tornou um dos mais poderosos da África Ocidental.
A vitória em Kirina não foi apenas militar, mas também política e cultural. Sundiata reuniu uma assembleia de líderes, sábios e representantes dos clãs em Kurukan Fuga, uma vasta clareira que hoje se situa no Mali, próximo à fronteira com a Guiné. Foi nesse local que a Carta de Manden foi proclamada, estabelecendo as bases para uma sociedade justa e harmoniosa.
1.2 Kurukan Fuga: O Local da Proclamação:
Kurukan Fuga era um espaço simbólico, utilizado para grandes assembleias e decisões políticas. A escolha desse local reforçava a ideia de consenso e participação coletiva na governança. A Carta não foi escrita em pergaminhos, mas transmitida oralmente através de griots (guardadores da tradição) e líderes espirituais.
2. Os Princípios Fundamentais da Carta de Manden
A Carta de Manden é composta por um preâmbulo de 7 capítulos e 44 artigos, cada um abordando um princípio essencial para a coexistência pacífica e a justiça social.
2.1 A Paz Social na Diversidade:
A Carta reconhece a diversidade étnica e cultural do império e estabelece que todas as comunidades devem viver em harmonia. Isso incluía a proteção dos grupos minoritários e a resolução pacífica de conflitos.
2.2 A Inviolabilidade do Ser Humano:
Um dos princípios mais revolucionários da Carta era a proibição da escravidão por razzia (ataques para capturar escravos). Declarava: "Ninguém deve maltratar o seu semelhante, pois todo ser humano é digno de respeito."
2.3 A Educação e a Transmissão do Conhecimento:
A Carta valorizava a educação como um direito fundamental. Os griots e os mestres do Islã (que coexistiam com as tradições animistas) eram responsáveis por transmitir conhecimentos às novas gerações.
2.4 A Integridade da Pátria e a Defesa do Território:
O documento reforçava o dever de proteger o império contra invasões externas e manter a unidade entre os povos Manden.
2.5 A Segurança Alimentar:
A Carta garantia que ninguém deveria passar fome, estabelecendo sistemas de distribuição de alimentos e incentivando a agricultura.
2.6 A Abolição da Escravidão por Razzia:
Além de proibir a escravidão por ataques violentos, a Carta estabelecia que todos os seres humanos nascem livres e iguais.
2.7 A Liberdade de Expressão e Comércio:
A Carta permitia que as pessoas expressassem suas opiniões livremente e garantia a liberdade de comércio, o que contribuiu para a prosperidade econômica do império.
3. Transmissão Oral, Griôs e a Preservação da Memória da Carta
A singularidade da Carta de Manden reside não apenas em seu conteúdo, mas também em sua forma de preservação. Diferente dos documentos escritos do Ocidente, esta constituição foi, por séculos, transmitida exclusivamente por via oral, conforme a tradição dos povos da África Ocidental. É nesse ponto que entra a figura essencial do griô — também chamado de djéli ou jeli — o guardião da memória ancestral.
Os griôs são poetas, músicos, contadores de história, conselheiros e historiadores. São eles que, geração após geração, transmitem os ensinamentos da Carta, junto às narrativas épicas dos reis e dos fundadores das linhagens, através de versos cantados, histórias recitadas e cerimônias rituais. A oralidade, longe de ser fragilidade, é instrumento de renovação e continuidade, permitindo que a Carta de Manden não fosse esquecida mesmo após a queda do Império Mali.
Cada clã Malinké, que reconhece sua ancestralidade ligada ao Império Mandingo, carrega em sua tradição um fragmento codificado da Carta. Essa divisão ritualizada da memória garante que a verdade não pertença a um só grupo, mas à coletividade. A sabedoria está, assim, descentralizada, e sua reconstituição plena só ocorre quando os diversos clãs se reúnem — em assembleias, rituais ou celebrações — como acontecia no passado.
A manutenção dessa prática se tornou ainda mais significativa após a fragmentação do antigo império e a imposição de fronteiras coloniais entre os atuais Mali, Guiné, Senegal, Costa do Marfim e Burkina Faso. Apesar das divisões impostas por potências estrangeiras, os laços culturais sustentados pela oralidade resistiram e continuam a transmitir os fundamentos da Carta.
Os griôs também desempenham papel de mediação em conflitos comunitários, recorrendo à Carta de Manden como fonte de sabedoria para resolver disputas, invocar o respeito mútuo e relembrar os compromissos ancestrais com a paz, o diálogo e a solidariedade.
4. A Carta de Manden como Patrimônio Vivo
O reconhecimento contemporâneo da Carta de Manden como uma das primeiras declarações de direitos humanos da história tem mobilizado autoridades, intelectuais e instituições africanas e internacionais a valorizá-la como patrimônio imaterial da humanidade.
Desde os anos 1990, estudiosos e líderes locais vêm promovendo a transcrição, o estudo e a divulgação do conteúdo da Carta. Em 2009, a UNESCO reconheceu o “Espaço cultural do Yaaral e do Degal” — dois grandes encontros pastorais organizados no Mali — como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. E, mais importante ainda, a região de Kurukan Fuga, onde a Carta foi proclamada, passou a ser valorizada como sítio simbólico da civilização africana.
Na aldeia de Kangaba, vizinha à planície de Kurukan Fuga, celebram-se anualmente cerimônias que reencenam a assembleia histórica de 1235. Essas cerimônias têm um valor duplo: reafirmam a memória coletiva dos povos mandingas e servem como instrumento de educação comunitária, promovendo valores de convivência, tolerância e justiça. As autoridades tradicionais, junto com os chefes locais, griôs e anciãos, conduzem rituais que evocam a proclamação da Carta, em uma linguagem repleta de simbolismos e espiritualidade.
Mais do que uma recordação, essas celebrações são uma forma de afirmar a continuidade da tradição jurídica africana. A Carta de Manden é, para muitos povos do oeste africano, mais do que uma referência histórica: ela continua a ser fonte de legitimidade moral e ética, capaz de orientar decisões, julgar condutas e nortear ações comunitárias.
A Carta de Manden representa um orgulho histórico para os povos da África Ocidental, reafirmando valores de liberdade, igualdade e fraternidade muito antes da Revolução Francesa.
5. Legados Filosóficos e Relevância Contemporânea
A Carta de Manden, proclamada no século XIII, oferece uma visão profundamente humanista do mundo, anterior a muitas das declarações universais de direitos promulgadas no Ocidente moderno. Séculos antes da Revolução Francesa (1789-1799) ou da Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), os povos da África Ocidental já haviam estabelecido um conjunto de normas éticas e sociais que reconheciam a dignidade humana, a pluralidade cultural e a importância da solidariedade entre os membros da comunidade.
Filosoficamente, a Carta parte de um princípio que une o ser humano à comunidade. “Cada vida é uma vida”, dizem os griôs. Este aforismo, repetido ao longo das transmissões orais, carrega uma noção de igualdade ontológica entre os seres humanos. Não se trata de igualdade legalista, mas de uma igualdade moral, de origem divina ou ancestral, que antecede qualquer codificação.
Além disso, a Carta de Manden inaugura uma concepção de liberdade contextualizada, isto é, uma liberdade que se realiza não no isolamento do indivíduo, mas em sua relação harmônica com a coletividade. A abolição da escravidão por razzia, por exemplo, não surge como imposição religiosa ou econômica, mas como um imperativo ético que parte da experiência vivida dos povos oprimidos. Trata-se de uma rejeição à violência desnecessária, à desagregação social e à negação da humanidade do outro.
Ao valorizar a liberdade de expressão, a Carta antecipa um dos pilares da democracia moderna: o direito à palavra. Nos encontros de clãs e assembleias populares, era garantido o direito de fala a todos os representantes, sobretudo aos mais velhos, que detinham a sabedoria. Mas não se excluíam as vozes dos jovens e das mulheres. A estrutura social malinke previa uma participação plural, ainda que em formas diferentes da democracia representativa ocidental.
Outro legado fundamental é a visão integrativa da natureza, do território e do corpo social. A segurança alimentar e a partilha dos recursos eram consideradas obrigações morais e espirituais. A fome era vista como uma ruptura da ordem social e espiritual. A terra não era propriedade individual, mas herança coletiva, a ser cuidada por todos.
Esses princípios são profundamente atuais. Em um mundo marcado por crises de identidade, exclusão social, violência e destruição ambiental, a Carta de Manden aparece como uma proposta de convivência ética, fundada na memória ancestral, mas aberta ao presente. Ela ensina que a justiça não é apenas uma função do Estado, mas uma responsabilidade comunitária; que a liberdade não é privilégio, mas condição natural; e que a diversidade não deve ser temida, mas celebrada.
Diante da globalização, que muitas vezes homogeneíza valores, línguas e saberes, a preservação e valorização da Carta é também um ato de resistência cultural e epistêmica. Ela lembra ao mundo que a África não é apenas vítima da história, mas autora de sistemas políticos e éticos de alta complexidade.
Conclusão
A Carta de Manden é um testemunho extraordinário da sabedoria política e jurídica da África pré-colonial. Proclamada no século XIII, seus princípios anteciparam conceitos modernos de direitos humanos, justiça social e governança participativa.
Apesar de sua transmissão oral, a Carta sobreviveu através dos séculos, mantida viva pelos griots e celebrada em rituais anuais. Seu legado continua a inspirar não apenas as comunidades Malinke, mas também estudiosos e defensores dos direitos humanos em todo o mundo.
Em um momento em que a humanidade busca modelos de convivência pacífica e sustentável a Carta de Manden oferece lições valiosas sobre como construir uma sociedade baseada no respeito, na liberdade e na solidariedade.
Imagem: Por volta de 1375, um cartógrafo espanhol fez o primeiro mapa europeu da África Ocidental. Ela mostra Mansa Musa, Rei do Mali, usando uma impressionante coroa de ouro e brandindo triunfantemente uma enorme peça de ouro em sua mão.
● Saiba mais em:
https://human.libretexts.org/Courses/The_Westminster_Schools/The_Manden_Charter
● Veja mais em:
https://youtu.be/-VAQjwKjEQw?si=E7Q2Qe4KVhhplS6j
https://youtu.be/ahyNWaFHCe0?si=TNfjAnhlGUD5oe-8
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