Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Da anatomia sentimental
Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
Da anatomia sentimental
Era primavera de 1941, fui à Rua do Resende como quem vai ao cadafalso, com a gravidade dos que carregam o peito em frangalhos e um suspiro travado na garganta. Dizia-me o coração, aquele traidor vermelho, que não era mais capaz de seus ofícios. "Basta!" — berrava, batendo à porta do osso esterno como um hóspede indesejado. Obedeci-lhe, pois o coração manda mais que a razão, e fui atrás de quem o pudesse consertar.
Cheguei àquela artéria antiga da cidade — artéria no sentido anatômico e também urbanístico — aberta em 1796 pelo Vice-Rei Conde de Resende, homem que talvez, em sua altivez colonial, não soubesse que um dia sua rua serviria não à glória do Império, mas ao desespero de corações partidos.
Deparei-me com um sobrado sóbrio, de janelas fechadas como quem guarda segredos clínicos. Ali, o Centro de Saúde n.º 3. Bati, entrei. A senhora da recepção, com a paciência dos mártires e os olhos de quem já viu febres e fingimentos, perguntou o motivo da visita.
— Coração partido — confessei, com o olhar mais sincero que consegui arranjar.
— Pressão?
— Não. Paixão.
— Febre?
— Só de saudade.
— Tosse?
— Apenas suspiros.
Mandou-me aguardar. O tempo passava como passam os amores: primeiro lento, depois indiferente. O doutor veio, enfim, com um estetoscópio pendurado ao pescoço como uma corda de enforcado. Era um homem de semblante neutro, daqueles que já não se espantam com as misérias do corpo nem as tolices da alma.
— Dói aqui — apontei o peito.
— Ah, isso é comum. Chama-se perfídia. Vem da ruptura abrupta entre expectativa e realidade. Trata-se com repouso e resignação.
— E o senhor receita o quê?
— Tempo. De preferência, em gotas. Mas cuidado com a overdose — disse, com um sorriso que não curava.
Saí dali não exatamente curado, mas diagnosticado, o que, para um sofredor, já é metade do consolo. Caminhei de volta pela Rua do Resende, refletindo que entre veias e ruas, entre artérias e avenidas, não há cura melhor do que seguir andando — ainda que com o coração aos trapos e a dignidade em muletas.
●Imagem: Malta, Uriel, 1910-1994. Rua do Lavradio, 29/01/1940. Centro (Rio de janeiro, RJ)/ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
● Clique no link abaixo e ouça a música "Coração" de Noel Rosa na voz inconfundível de Nelson Gonçalves. A canção ilustra essa crônica:
https://youtu.be/9-HT_JXHUVk?si=FMLpzkq7O3btvBzp
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