Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! A enchente, o marquês e o sapo


 Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


A enchente, o marquês e o sapo


A urbe carioca, caprichosa como dama de opereta, brindava-nos com mais um de seus verões tropicais, desses que fazem o cristão suar por antecipação — só de pensar no calor, o corpo já se punha em estado de derretimento. Como era de se esperar, vieram as nuvens, vieram os trovões e, com a pontualidade de um cobrador de dívidas, veio a tempestade. Ora, o verão no Rio é assim: chove mais que promessa de político e alaga com o mesmo entusiasmo com que se distribuem medalhas em inaugurações.

Era uma quinta-feira num janeiro de 1940, a nova década estava no seu alvorecer, quando resolvi visitar a antiga Rua do Lavradio — nome pomposo, embora já meio encharcado pela ironia dos tempos. Caminhava com altivez de cronista que vai ao encontro de um caro amigo, desses que ainda acreditam no valor da conversa e no sabor do café, quando São Pedro decidiu virar o balde.

Digo balde por educação; era mais um tonel, um oceano portátil despejado do céu com toda a sanha imperial.

As águas desceram pela Rua do Lavradio como quem reclama a herança de 1771, ano em que o 2º Marquês do Lavradio, homem de ideias largas e botas secas, abrira a via para ligar a Lapa ao Largo do Rocio — que hoje atende pelo nome de Praça Tiradentes, como se um novo batismo apagasse os alagamentos de outrora.

Pensei em Caxias, em João Caetano, no Marquês de Olinda — todos ilustres moradores da rua em tempos idos. Imaginei-os, de fraque e cartola, nadando estilo peito na esquina com a Rua do Senado. Oh, glórias do passado! Onde antes havia chácaras e solares, agora havia um sapo — ou talvez um deputado municipal disfarçado — que nadava com mais dignidade do que muitos cidadãos à minha volta.

O mais curioso, leitor, é que a enchente, democrática como raras instituições, nivelou todos: o guarda, o pedinte, o advogado e este cronista que vos fala, todos molhados, todos iguais, todos sem saber se aquele volume d’água vinha da chuva ou da lágrima invisível da cidade.

E assim, escorregando na história e nos paralelepípedos, fui boiando — entre a ironia de um vice-rei e o coaxar resignado de um sapo do século XX quase afogado.


●Imagem: Malta, Uriel, 1910-1994. Rua do Lavradio, 29/01/1940. Centro (Rio de janeiro, RJ)/ Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

● Clique no link abaixo e ouça a música "Cidade lagoa" de Cícero Nunes e Sebastião Fonseca na voz do mestre do samba de breck, Moreira da Silva. A canção ilustra essa crônica:

https://youtu.be/nwnTaTjfF_g?si=7aqcetg-umikWjRi



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Muito obrigado, com apreço.




 

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