Série crônicas: Cenas cariocas, O Rio como ele era! Avenida Atlântica: Antes da extinção dos discretos


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


Avenida Atlântica: Antes da extinção dos discretos


A  fotografia — esta senhora discreta que vos apresento — flagrou a Avenida Atlântica em Copacabana nos tempos de inocência, quando o Rio de Janeiro ainda fingia ser uma cidade e não um estúdio de gravação ambulante.

Reparem: não há poses, não há sorrisos ensaiados, não há ninguém segurando uma água de coco como se fosse cetro real. A praia, tímida, estendia sua areia com modéstia de camponesa; o calçadão, bordado em pedras, era apenas caminho, e não tapete para estrelas em ascensão.

Desfilavam por ali personagens de carne e osso: senhores de paletó desafiando o calor com teimosia patética; senhoras de vestidos compridos, que deslizavam como barcos à vela; crianças sujando-se de areia sem a menor preocupação estética. Os vendedores, humildes, ofertavam cocadas e sonhos, em vez de "experiências gourmetizadas".

Amavam-se sem pressa, sem filtros, sem necessidade de comentários anônimos. Um olhar bastava; uma mão tímida que se estendia, e pronto: estavam casados de alma. Não havia a pressão de registrar o momento para 500 desconhecidos ou de obter aprovação instantânea via curtidas.

Avancemos, então, para o século XXI: o cenário permanece, o espírito fugiu. O calçadão, coitado, virou passarela de social personas, aquelas entidades que caminham como faraós depilados, olhos cravados no celular, preocupadas não em ver o mar, mas em serem vistas vendo o mar.

E o amor? Ah, o amor! Agora precisa de quinze selfies, três stories e um reels de 30 segundos para começar. Se durar mais do que a bateria do celular, já é considerado caso raro.

Os vendedores, herdeiros tristes dos ambulantes antigos, oferecem agora pacotes de "experiência carioca" a preços de hotel cinco estrelas. E as crianças, coitadas, trocam castelos de areia por performances improvisadas para as câmeras dos pais.

A Avenida Atlântica ainda sorri, mas é sorriso de resignação. De quem sabe que já foi musa e agora é apenas cenário para um teatro de vaidades digitais.

Quem dera o mar pudesse engolir, de uma só vez, toda essa gente apressada em existir para os outros — e devolvê-los apenas quando tivessem aprendido novamente a caminhar sem serem vistos.


●Imagem: Avenida Atlântica, Praia de Copacabana década de 1930. Autor desconhecido. 

● Clique no link abaixo e ouça a música "Sábado en Copacabana" na voz da cantora e atriz espanhola, Sara Montiel. A canção ilustra essa crônica:

https://youtu.be/DMOw2ySncTo?si=X4R_2xkZqlSQGW0v


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Muito obrigado, com apreço.








 

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