Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Os barrancos da memória
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
Os barrancos da memória
Há ruas no Rio de Janeiro que, de tanto verem o tempo passar, tornaram-se ele mesmas: o tempo. A Rua do Riachuelo, por exemplo, não nasceu com esse nome grave e patriótico. Antes de evocar a famosa Batalha Naval da Guerra do Paraguai e o orgulho nacional de 1870, era vereda áspera chamada Mata-Cavalos — título nada lisonjeiro, mas fiel à realidade que impunha solavancos às patas e paciência aos viajantes.
Essa via tortuosa começava nas vizinhanças dos Arcos e seguia em desatino até a Lagoa da Sentinela. Diziam os velhos cronistas que havia ali barrancos suficientes para acabar com qualquer montaria e o ânimo de seus cavaleiros. Era o caminho natural dos cariocas para os confins da zona norte, e mais adiante, para o interior do Brasil-colônia, esse país que vivia mais no mato que na carta constitucional.
Mas houve também um tempo em que se chamava Caminho da Bica, por conta de uma chácara providencial que oferecia água aos sedentos — um luxo de então. Era lá que as piedosas irmãs Jacinta e Francisca instalaram um recolhimento, com capelinha e tudo, como se os buracos da alma pudessem ser remendados entre um salmo e outro. A capela do Menino Deus, reconstruída em 1925, ainda testemunhava a fé dos que acreditavam que a cidade era obra de Deus e não dos homens.
E o tempo, esse sujeito que tudo rebatiza, finalmente a fez Rua do Riachuelo. A República queria esquecer o lodo do passado e sonhava com avenidas largas, bondes elétricos e operetas italianas no Theatro Municipal. Mas a antiga vereda, embora de paralelepípedo novo, conservava os velhos passos: o bonde chacoalhava como se carregasse fantasmas e os moradores olhavam da calçada com o mesmo tédio resignado de quem já viu de tudo, menos a tal civilização prometida.
Riachuelo, sim, mas ainda Mata-Cavalos no fundo da alma. Porque o Rio pode trocar o nome da rua, pintar o bonde e levantar fachadas, mas não lava, nem com bica santa, os barrancos da sua memória.
● Imagem: Malta, Augusto. Rua Riachuelo, 1928. Rio de Janeiro, Lapa, RJ, Brasil, Instituto Moreira Salles.
● Clique no link abaixo e ouça a música "Qual o quê", composição de Antonio de Almeida na voz do Aracy de Almeida. A canção ilustra essa crônica:
https://youtu.be/MzrOI2aG66I?si=Z2tt0aXRJP7xdXD8
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