Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Com vista para os santos e os pecados


Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.

Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.

Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.

Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!


Com vista para os santos e os pecados

Numa manhã de junho de 1885, dessas em que o sol acorda sem preguiça e o café parece mais café, resolvi subir o Morro do Castelo. Não por valentia, mas por superstição — e, convenhamos, alguma curiosidade também. Há quem vá a Roma para ver o Papa; eu fui ao Castelo para ver vovó Maria D’Angola, a benzedeira mais célebre do hemisfério sul e talvez do purgatório adjacente.

Vovó Maria, dizem, chegou aqui ainda nos tempos em que o Rio era mais mato que cidade e mais milagre que planejamento urbano. Ninguém sabe sua idade ao certo. Uns dizem 100, outros 300. A verdade é que só ela lembra de quando os portugueses ergueram o primeiro barraco no alto do morro e juraram que era um castelo — vaidade europeia em solo tropical.

Subi com o coração palpitando como tambor de congada. Vovó Maria morava numa casinha de janelas azuis e galinhas doutoradas em feitiçaria. Cheguei em busca de uma benção e de uma das suas garrafadas milagrosas, feitas de raízes, rezas e um gole de sarcasmo africano. Ela olhou pra mim, soprou três vezes, cuspiu numa folha de mamona e disse:

— “Vai passar. Mas só se tu parar de andar com aquela moça do Largo da Carioca.”

Fiquei pálido. Ela era boa mesmo.

Consulta feita, sentei-me num toco para apreciar a vista. A Baía de Guanabara! Brilhava como vitral de igreja em domingo ensolarado. Vi barcos navegantes, ilhas flutuantes, e até um golfinho que parecia fazer graça só para mim. Fiquei ali, hipnotizado, como se a vista fosse uma prece visual e os pecados todos fossem lavados no azul da água.

O Morro do Castelo, berço da cidade, parecia rir de mim. E eu ri de volta. Afinal, o Rio nasceu ali — entre uma bênção de vovó e um tropeço de português.

E que sorte a minha: saí com a garrafada, a benção… e uma vista de tirar o fôlego.


● Imagem: Ferrez, Marc. Panorama do Rio de Janeiro tomado do Morro do Castelo, 1885 circa. Brasil, Rio de Janeiro, RJ, Centro/Instituto Moreira Salles.

● Clique no link abaixo e ouça a música "Displicente" do Pixinguinha e Benedito Lacerda que ilustra essa crônica:

https://youtu.be/DsjjRmtY5hw?si=KdlvYq885JI7c5Ys


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Muito obrigado, com apreço.

 

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