Série crônicas: Cenas cariocas, o Rio como ele era! Oi, madame! Vai amolar?
Não é raro que, em tardes de lassidão, eu me veja a conversar com fotografias. Sim, leitor, com fotografias. Essas senhoras silenciosas e vaidosas que, embora sem fala, dizem muito mais que muitos homens. E que mais dizem quando são do Rio antigo, essa cidade que já foi menina com trança, senhora com sombrinha e agora desfila, em certos trechos, como viúva de si mesma.
Este blog — que não pretende ser tratado acadêmico nem almanaque de curiosidades — oferece-lhe, com modéstia e alguma audácia, uma coleção de crônicas breves, todas inspiradas em retratos do outrora. São imagens, mas bem poderiam ser fantasmas. Há nelas uma ironia muda, um suspiro escondido, uma rua que já não é rua, mas memória.
Cada texto é um copo d’água do tempo, servido com duas pedras de sarcasmo e uma rodela de saudade. Há figuras conhecidas e outras anônimas, todas fixadas na eternidade de um instante que já passou. O que ofereço é apenas um olhar torto, talvez melancólico, talvez maroto, sobre aquilo que chamamos de “Rio Antigo” — e que, se olharmos bem, ainda nos espia pelas frestas da modernidade.
Leitor curioso, que tenhas olhos não apenas para o que foi, mas para o que permanece sob o disfarce do presente. Boa leitura!
Oi, madame! Vai amolar?
Os amoladores de facas! Onde foram parar esses cavaleiros errantes da lâmina, esses embaixadores do fio perdido, que transformavam as ruas do Rio de Janeiro num palco e o ofício num espetáculo? Ainda os vejo, em lampejos de memória, descendo devagar a ladeira, com o carrinho de madeira aos solavancos, como se o tempo não lhes pertencesse — ou, melhor dizendo, como se eles tivessem tempo de sobra para gastar.
Aqueles carrinhos! Pareciam saídos de um compêndio de física doméstica e sonhos infantis: uma roda, um pedal, uma pedra giratória e um assobio extraído do atrito — este, sim, a verdadeira senha para os milagres.
O som vinha primeiro, metálico e inconfundível, como o anúncio de que algo importante, ainda que pequeno, estava por acontecer. Era a trilha sonora de um tempo em que o ofício tinha alma e os gestos carregavam história. Bastava ouvi-lo e logo as janelas se abriam, os rostos espiavam e, num repente, as donas de casa — com as facas embrulhadas em panos floridos ou as tesouras agarradas como relíquias — surgiam, apressadas, numa romaria secular em direção à calçada.
“Oi, madame! Vai amolar?”, dizia o artista, com aquele meio-sorriso filosófico, como quem já conhecia a resposta. E a resposta era sempre sim. Porque ali não se tratava apenas de afiar um instrumento, mas de restaurar uma ordem simbólica, de devolver o poder cortante à vida cotidiana.
As faíscas voavam, dançavam como vagalumes elétricos. E o homem, senhor de sua pedra, girava o pedal com uma elegância quase silenciosa, indiferente ao tempo, às dívidas, às reformas do Código Civil. Era um ritual: primeiro a inspeção da lâmina, depois o alinhamento, por fim o gesto final — o fio restaurado, como um segredo sussurrado ao ouvido do metal.
Mas os tempos, esses tratantes, não respeitam o que é poético. Vieram os supermercados com facas industriais, as cozinhas elétricas e os cronogramas inadiáveis. Vieram as pressas, os aplicativos, os descartes fáceis. O mundo deixou de amolar. Preferiu substituir. E, com isso, perdeu algo.
Hoje, ninguém mais se impressiona com o renascimento de uma lâmina. As crianças não sabem o que é aquele assobio encantado, as donas de casa não correm mais com os panos floridos, e os amoladores... bem, talvez tenham sido absorvidos pelo tempo como tantas outras figuras gentis que povoavam o nosso cotidiano.
Mas às vezes, no silêncio de uma tarde mais vazia, se eu fecho os olhos e presto bastante atenção, juro que ainda escuto. É breve, quase um sussurro de ferro contra pedra, um eco vindo do passado, um chamado delicado: Oi, madame... vai amolar?
E se ouvir, minha cara, não hesite. Pegue sua faca mais cega — e seu tempo mais esquecido — e vá ao encontro da lembrança. Porque há ofícios que, embora extintos, ainda vivem. Nem que seja na nossa saudade.
● Imagens: 1- Gomes Junior. Amolador, 1899 circa. Rio de Janeiro, RJ, Brasil Instituto Moreira Salles; 2- Autoria não identificada. Morro do Castelo, amolador em frente à moradias e, ao fundo o Palace Hotel, 1917 circa. Brasil, Rio de Janeiro, RJ, Centro Instituto Moreira Salles
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